Repare:
Fecha o sinal, o carro da frente freia, um casal se enrosca. Beija-se. Amolega-se, acarinha-se. É namoro novo. Se o beijo terminar antes de o sinal abrir, é de no máximo dois meses o romance; se os ósculos e afagos prosseguirem não obstante o farol verde e as sonoras buzinas, não dá outra: conheceram-se há uma semana, se tanto.
Eu, que não sou versado na gênese dos relacionamentos amorosos, fico a procurar entender porque não se prosseguem os rompantes públicos de paixão lá pelo undécimo ano de casamento. Por que a chama apaga?
Poetas e outros profissionais menos sinceros se debruçam na matéria, sacam uma pista, observam uma charada e caem todos na mesma esparrela: é a bendita rotina que dilacera, tumultua e mina com água fria a brasa dos primeiros dias, semanas, meses - para os muito apaixonados.
A saída para vencer a armadilha é a criatividade, mas haja criatividade para driblar um adversário tão aguerrido, que marca de dia, de noite, quando acorda, quando dorme, quando tudo.
Esta coluna, a exemplo, é uma rotina só; você vem aqui cheio de coragem e determinação, imagina encontrar um tema ou uma história que lhe amaine o estresse, que massageie sua pupila, e eu sei o quanto é difícil cá chegar e encontrar apenas mais do mesmo, um mero aditivo para a rotina do seu dia.
Mas vamos lá; se não tenho uma aspirina para a rotina, tenho o que todos têm: o invólucro da pílula que não alivia nada, mas transporta a panaceia, o que já é alguma coisa. Mesmo a aspirina não resolve nada, apenas amortece a dor, que precisa voltar para nos tirar da rotina do gozo de não sentir dor. Seríamos indiferentes ao prazer se não sentíssemos dor.
Um pouco de filosofia não deve ofender, pelo menos não a essa hora do dia.
Suponhamos um batráquio. O batráquio voa, engole tudo à sua volta. Nós o vemos engolir tudo: ratoeiras, agiotas, flor de lis, guias do INSS, tudo o quanto for matéria. Armados, não aniquilamos o batráquio. O batráquio oferece gratuitamente um espetáculo que, apesar de alguns prejuízos, achamos graça e até um pouco de ressentimento por não sermos nós mesmos a operar iguais prodígios. Assim é a rotina. Temos as armas, mas custa muito extinguir um agente tão pacificador de mundos. Por isso ela prospera, por isso a alimentamos.
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