O Brasil anda um lugar perigoso. Primeiro é o mais popular cantor do país que censura uma biografia; depois o colunista da revista Veja, Diogo Mainardi, que sofre ameaça de morte por denunciar falcatruas do hoje ministro Franklin Martins; agora, o zênite da ignomínia: o editor Costábile Nicoletta foi demitido do jornal em que trabalhava porque escreveu o obituário do dono da Folha de São Paulo, Octavio Frias Filho, em que se dizia que “ele não era tão liberal assim”; na morte, todos se humanizam, há até um processo oficioso de canonização. A Folha tem mancha de sangue nas suas páginas. Pior do que Roberto Carlos, que apenas se acovardou, ela apoiou o Golpe de 64 e toda a podridão dos porões do regime.
O caso de Diogo é perturbador: o jornal panfletário Hora do Povo fez o seguinte editorial de capa:
“O pequeno canalha (Diogo) perdeu apenas algum dinheiro. Sabemos o que o vil metal significa para certo tipo de pessoas. Ainda assim, ao que tudo indica, ele está pedindo para perder algo mais. Pode ficar tranquilo. Não faltarão almas pias para fazer a sua vontade”.
É um grave atentado contra a liberdade de expressão e as instituições democráticas. Diogo é acusado de odiar os brasileiros, os pobres, direitista, um zigoto pretensioso do odiado Paulo Francis, ser preconceituoso e o diabo a oito; ele pode até ter matado a mãe dele, mas seu direito de se expressar não pode ser cerceado jamais. Hoje é ele que, por falar algo que desagrade a outrem, pode ser calado, amanhã serei eu ou você.
O jornalista Luis Carlos Barbon, aquele que há dois anos denunciou políticos e autoridades que seviciavam adolescentes e participavam de orgias com menores da cidade de Porto Ferreira, no interior de São Paulo, foi covardemente assassinado neste final de semana. Estamos no limiar de um negro período, em que denunciar pode significar pôr a vida em xeque que mata.
Sobre o texto do Roberto Carlos, que causou a indignação de alguns leitores fãs do “rei”, digo que sua atitude intempestiva causa sulcos na sua imagem, uma vez que o autor da biografia se comprometeu a retirar o trecho que mais o havia magoado (o do acidente de trem) e até a parte sobre as “orgias” que ele participava. Roberto quer renegar seu passado, e para isso conta com a fervorosa fé que o acompanha; espero que sua ambição não lhe faça ansiar pela santificação pós-morten. O apóstolo Paulo (ex-Saulo) perseguia cristãos e, após uma epifania mística, se converteu ao cristianismo, tornando-se o maior expoente e responsável pela difusão da religião no mundo ocidental. Roberto, que naquela efusiva juventude dos anos 60 deve ter provado de tudo, até o que era “ilegal, imoral ou ‘engordava’", não teve, pelo menos até agora, a transmutação paulina que o eleve a santo no futuro. Veja o que ele diz na letra de “O Divã”, de 1972, falando poética e abertamente sobre a amputação de sua perna:
Relembro a casa com varanda
Muitas flores na janela, minha mãe lá dentro dela
Me dizia num sorriso mas na lágrima um aviso
Pra que eu tivesse cuidado
Na partida pro futuro eu ainda era puro
Mas num beijo disse adeus
Minha casa era modesta
Mas eu estava seguro, não tinha medo de nada
Não tinha medo de escuro, não temia trovoada
Meus irmãos à minha volta e o meu pai sempre de volta
Trazia o suor no rosto, nenhum dinheiro no bolso
Mas trazia esperanças
Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Por isso eu venho aqui
Relembro bem a festa, o apito
E na multidão um grito, o sangue no linho branco
A paz de quem carregava em seus braços quem chorava
E no céu ainda olhava e encontrava esperanças
De um dia tão distante, pelo menos por instantes
Encontrar a paz sonhada
Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Por isso eu venho aqui
Eu venho aqui me deito e falo
Pra você que só escuta, não entende a minha luta
Afinal de que me queixo, são problemas superados
Mas o meu passado vive em tudo que eu faço agora
Ele está no meu presente, mas eu apenas desabafo
Confusões da minha mente
Essas recordações me matam.
Escrito por Alex Menezes, às 22h55.
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