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O Culto

T.S. Eliot. O extraordinário T.S. Eliot defendia a delicadeza de que ser humano algum suporta muita realidade, e delicadamente pude constatar isso ao assistir de corpo presente (e mais ou menos vivo) um culto numa igreja evangélica. Como eu fui parar lá é um mistério que se juntará aos muitos outros que já existem embaixo do meu travesseiro.


Trata-se de um suntuoso espetáculo. Acerbo e curioso espetáculo. Para começar, um orador, de joelhos, exaltava com voz dolorosa uma interminável litania, abrangendo e coletando todos os males e solicitando todas as curas --- que formidável petição! A pesada entonação, na última sílaba de cada palavra, entregava a dramaticidade precisa à cena; nenhum ator treinado pelo suor ou pelo talento seria capaz de proeza e performance igual.


Além das atuações marcantes, figurinos à moda da necessidade e cantoria, muita cantoria. Meninas vestidas de sacerdotisas, ou algo símile, coreografavam canções de incrível hipnose visual: eram bambolês dourados, bastões imitando espadas, tudo o que a imaginação carnavalesca podia dispor. Para meu encanto e estupor, surgiu uma tropa de elite de Deus; a batida da música então era outra, cujo gênero não fui capaz de reconhecer, mas parecia funk. Ato contínuo, assim que as apresentações das meninas cessavam, uma pastora tomava conta do microfone e incendiava a assistência que, eufórica, explodia em gritos de aleluia! Glória a Deus! Curioso sintoma de fé.


O fato de a pastora mesclar entre uma saraivada de interjeições um entediante glossário, que ela chamou de “línguas estranhas”, muito mais usado como muleta para dar ênfase à obscura palestra, deixou-me estupefato, também por ver a tal “língua estranha” ser repetida à exaustão sem qualquer fim didático ou elucidativo; era visível que ela não fazia a menor ideia do que houve no Pentecostes. É mero show para uma atualidade cada vez mais cínica, que rejeita a verdade das coisas, preferindo sempre o espetáculo à sensatez.


Das cerca de 200 pessoas presentes ao culto, exceto eu, ninguém arredou pé nas 4 infindáveis horas que durou a celebração. Para mim, 4 horas num culto desses equivale a uma criança que fica 20 minutos num museu, ou seja, uma massacrante eternidade. É um fato maravilhoso, do ponto de vista sociológico, e deprimente, do ponto de vista religioso.


Aparentemente, o coral substituiu a pregação tradicional; há bateria, guitarra, baixo, telão, uma parafernália tecnológica que não surpreenderia se, em vez de um pastor, aparecesse a Madonna em pessoa e pecados para apresentar seu evangelho lascivo.


Antenada à evolução dos tempos, a igreja abriu espaço para as mulheres: são elas quem dividem o palco com os homens num território antes inacessível a elas, puxam coro, elaboram conselhos, chamam as músicas e, dentro do programa, o papel de protagonista, ao menos neste evento, foi da pastora de tailer branco, cuja capacidade oratória fazia tremer os alicerces do inferno que ela citou com invejável polidez.


Saí da apresentação entre mau humorado e indefeso, incapaz de reconhecer uma fagulha do cristianismo primitivo. Reportei-me ao primeiro século da era cristã e fiquei abestalhado ao ver a reação dos companheiros do Cristo assistindo àquele fenômeno; desfiz o delírio antes que eles decidissem fundar outra religião…


A experiência, apesar de trágica, é boa e necessária para qualquer um que tenha a audácia ingênua de penetrar no estado de espírito do nosso tempo.


Para um niilista como eu, a sensação é atemorizante, porque só faz enraizar-se a noção de que o vazio e os anseios mais mesquinhos é que comandam as ações naturais do homem hodierno (atual): este sujeito que vai a essa ou a qualquer outra denominação religiosa, seja ela qual for, para buscar a paz espiritual, morar no céu ou no nirvana, receber com uma cara de pau indecente as bondades divinas, mostrando-se no entanto fraco e inoperante para ajudar o porteiro do prédio onde mora ou trabalha, e não se incomodando nem um pouco de onerar esse Deus tão espetacularmente bondoso que, apesar de tantos tributos de adoração exclusiva, continua assim: deixando esse pedaço de rocha flutuando no universo, com “bênçãos” para uns e “maldições” para outros – eis aí outro assombroso mistério divino…


O poeta tinha razão e, talvez, meia razão; talvez nem o próprio Deus suporte essa realidade toda, eis o porque da criança faminta, dos estupros na Índia e as delícias de um restaurante caro; uns chorando e outros sorrindo!, como queria outro poeta: "E enquanto um chora, outro ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando, seria monótono; tudo rindo, seria cansativo; mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas [danças], soluços e sarabandas, acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida.” – eis a necessidade do espetáculo!

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