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O Crime de Dostoievski

O Homem, o Livro e o Destino


De quem são os quatro melhores livros já escritos, perguntou um aluno ao professor. A resposta: 1º, Dostoievski; 2º, Dostoievski; 3º, Dostoievski; e 4º, Dostoievski. Crime e Castigo, Irmãos Karamazov, O Idiota, Recordações da Casa dos Mortos.


Crime e Castigo. Não, nunca li um livro com maior profundidade e terror psicológico. É como um cometa a impactar um meteoro a todos os kms por hora. É uma supernova sendo devorada pela incompreensão infinita do Cosmo. Raskolnikov, jovem e pobre estudante de medicina, assassina com uma machadinha uma velha usurária e, por acidente e necessidade, a sobrinha desta. Aí começa o maior suplício a que se pode chegar a cabeça de um homem, um suplício do tamanho do mundo; tanta coisa há numa, que uma cabeça é um mundo.


A cena em que ele, já assassino, descreve ao seu colega de faculdade como e o que faria após o crime caso fosse o assassino da velha, é de uma humanidade suprema. Só o gênio humano descreveria como faria um ato vil já o tendo executado. É como Pilatos, que deixou as mãos sujas após lavá-las; as suas e as dos sacerdotes judeus. Raskolnikov é a redenção do ser humano enquanto criatura feita com a essência da emoção, pois, em agonia, a emoção justifica o matar e o viver (Live and Let Die?). Ele, absorvendo sua culpa paulatinamente, quase nos redime do Pecado Original, nos aproxima do divino como por força de atração de imã, que impele e aproxima ao sabor dos polos.


Talvez ele não seja a maior personagem criada pela mente humana, mas encerra em si muitas das grandes: sofre os tormentos existenciais e a afazia de Hamlet; medita com o fim raro de reabilitar a morte como Werther; altera o sentido da vida como Riobaldo; transcende uma experiência trágica e a digere plácido como Gregor Samsa (a “barata” de Kafka, ungeziefer, em alemão, inseto, enfim); desintegra os labirintos da percepção alheia como Capitu; finge ser ingênuo quando na verdade vê o mundo com olhos de lince, como Dom Quixote; esmiúça as profundezas do seu ser numa micro odisseia mental, como o Ulisses, de Joyce; e, se não for sacrilégio reduzir o Cristo a uma mera personagem literária, ele aceita seu destino com a natural renitência humana ao medo, mas encara-o com afeição e até um impiedoso louvor.


Deslustrando a alma humana e expondo a nu os seus porões fétidos, Raskolnikov sacia-nos com a possibilidade que todos gostariam de obter: a de perscrutar não os pensamentos, mas ter acesso aos desvãos da consciência alheia. Consciência e pensamento não são sinônimos. É como carinho e delicadeza; o carinho em regra é puro, a delicadeza pode ser simulada; se dissimula o pensamento, a consciência é irreprimível, não aceita doma, é arisca à rédea.


Com uma habilidade diabólica, Dostoievski penetra num universo instável, transita incólume sobre a superfície de ouriço que é a natureza humana. Raskolnikov, antes de cometer o crime, racionaliza-o de forma antirreligiosa e anticética, exclui a moralidade, cria um ambiente niilista [amo esta palavra, a única com dois i(s) seguidos!!] para se refugiar no seu próprio perdão; um perdão artificial, mas que, se não salva, ao menos consola. Pouca via, ele também aponta a seta do seu destino, o que o torna um homem absoluto, pleno na condução dos seus passos.


Erra quem crê na gratuidade do crime: uma agiota morta pode ser uma autêntica parábola cristã ou mesmo um sêmen marxista no sentido tutorial da palavra, pois, sendo impossível aniquilar a vergonha mercantil da exploração dos mais fortes pelo vício do lucro, ele fez o que estava ao seu alcance; não podendo exterminar a plantação daninha, exterminou uma semente.


Não tendo outra escolha, ele parece ter sido traído pelo intelecto. Há homens que tem grande fé no intelecto. O remorso e a redenção caminham juntos até o desfecho do livro, beirando perigosamente o sentimentalismo ingênuo, mas Dostoievski é um gênio e soube fugir com arte da esparrela sentimental.


Fiódor Mikhailovich Dostoievski. Dizem que ele morreu no dia 9 de fevereiro de 1881. Errado. Morreu no dia 8 de fevereiro de 1881. Na madrugada deste dia, acorda sua jovem esposa e pede para que ela leia o Evangelho; ela abre o livro ao acaso; é o de Mateus, cap. 3º, vers. 14, e lê para ele em voz ouvível: “Não me retenha mais por uma hora”, ele a interrompe e diz: “Você vê? Vou morrer”. Morreu no dia seguinte, porque assim o decidiu.

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