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Fragmentos de Mim

- Eu não gosto de cinema.


- Não faz mal.


- Vou pouco ao teatro.


- Não faz mal.


- Faz tempo que não beijo uma mulher, fora as putas.


- Não faz mal.


- Matei a tua mãe.


- ..... *


Trecho obscuramente claro do livro “Benjamin”, cujo número da páginas eu ignoro, porque se perdeu dentro da minha agonia que verte derrame.


Toda vez que se diz “não faz mal”, é porque faz mal sim. Lembro de mim, então garoto peralta, um galalau vasculhando as ruas e as encrencas da cidade do Recife. Naquele tempo, minha noção era pouca; "pouca" é um lustro que faço à própria biografia: eu ignorava todo o essencial, não sendo capaz de discernir o certo do errado; um pouco como ainda faço hoje.


A este tempo, era proibido que eu saísse de casa enquanto minha mãe trabalhava para me sustentar e a meus quatro outros irmãos; mas eu saía, burlava a lei do lar em busca do delírio de uma partida de futebol na rua, com o ágio caro de não poder almoçar, porque minha irmã já não me deixava entrar à casa até que a mãe chegasse, misto de fúria e cansaço pela labuta.


O que acaso pode parecer um parágrafo biográfico o é decerto; e fica aí o registro para o futuro, que pode não ser glorioso como o de uma espécie que ainda está por ser descoberta, mas que já me contenta por saber que seja possível que ele venha a existir.


Toda sempre vez que se diz “não faz mal”, todo o mal do mundo ali se faz. Figura de linguagem, método ancestral de polir a educação; são suspeitas. O claro e o evidente é o modo de dizê-lo por teima na esperança – “se eu disser 'não faz mal', ela(e) não vai se aborrecer” - ou por simples inércia ou entupimento das vias aéreas – “que se dane o que ele(a) achar”.


Não creio. O texto de hoje manquejou no estilo, baqueou no tema, travou no sentido. Vá que seja uma demanda incurável, um afago perdido, ou o que os poetas (não sei quais) chamariam “inquietação”; abrace todas as hipóteses. Eu fico aqui, degustando minha biblioteca vazia; olho-a em busca dum livro inspirador, vejo CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO, e descarto; mais à esquerda, oitava fileira, décimo tomo, repousa o MENINO PERSA, de Mary Renault; espicho os olhos adiante, e vejo O DOM DE NEWTON; cavo um poeta, nada; lá na ponta, surge O NOME DA ROSA, de Umberto Eco; Bíblia; ALÉM DO BEM E DO MAL, de “Nite”; esbarro o olho em NANÁ, de Zola; desço o óculo, alcanço A RELIGIOSA, de Diderot. “É com esse que eu vou”, sussurro de mim para mim; ao fundo, um semblante de jazz sai da televisão, semblante auditivo, quero dizer, ecoa Madeleine Alguma Coisa, sobrenome difícil que não consigo transpor para aqui - o vinho e a turbação não deixam escrever Peyroux. Saio do computador entre sonâmbulo e imprevisível, coloco no ar um texto cheio de parábolas e fragmentos, como se fora pedaços de memória escorregando para os dedos; projeto um sono, e ele está vindo ao meu encontro; abraço-o, e ele me nina, ah menina, que atende o telefone “alô, me nino”, e enfim durmo, e durmo e durmo e durmo... I'm only sleeping, igual àquela canção que Lennon renegou.





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