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Dostoievski

Pergunta: Sr. Dostoieviski, parece-me demasiado dolorido ter de lhe flechar com a pergunta: há glória no desespero, visto que sua obra traz o desespero como tensão e fuga do difícil ato de ser-se humano?

Dostoieviski: A humanidade é a obra mais precária criada por Deus. No refinamento das ideias e nas convulsões é que o humano se revela. Fora isso, resta apenas o material, o forcado que degenera o espírito.

Pergunta: Por falar em espírito, seu engajamento religioso, suas alucinações celestiais, faz da sua literatura um rufar de extremos, o que embota o caráter libertário da literatura, ainda mais na convulsionada Rússia de seu tempo. Como analisa essa relação entre religião e arte?

Dostoieviski: Sempre ansiei, mas jamais produzi arte. Acreditar na arte não significa ser parte dela. A arte que liberta e salva não é a mesma que tentamos palpar. A arte só salva a alma que não se resigna com nenhuma ideologia. Daí a função da religião como plataforma condutora da arte. Sem a ligação com o etéreo a arte é um ser natimorto.

Pergunta: Suas experiências carcerárias caracterizam um modo novo de ver o humano. Se apoiar tão assiduamente na religião não é um modo de libertar o espírito já que o corpo parece jamais sair das cadeias?

Dostoieviski: As celas siberianas exalam o perfume inóspito da morte. Exibir a coragem para reabilitar uma parte de mim após a prisão me tornou indiferente a todo tipo sortilégios, já não me bastava o prazer de viver, era preciso reinventar uma nova vida, a cada instante.

Pergunta: Me perdoe mas essa reposta parece contrastar com sua biografia errática pelos cassinos de Paris, as dívidas de jogo acumuladas, a necessidade de sacrificar a própria literatura e, na pressa, escrever livros ruins para saldar essas dívidas…

Dostoieviski: A insurreição a que me refiro não consta nos manuais de sobrevivência. Uma vida sem regras e distante das normalidades casuais não ferem de modo nenhum o compromisso de viver segundo seus próprios conceitos. É de onde vem a falta de teto, o que você quer chamar de controle, de prudência. Ser desregrado é a primeira distinção de um visionário, de um homem sem patente.

Pergunta: Visionário. O capitalismo que o senhor tanto massacrou responde pelos mais altos índices de prosperidade que a civilização já provou. Ainda há como condena-lo?

Dostoieviski: E extirpá-lo, também. À medida que os meios de produção avançam, levam consigo boa parte do que ainda resta de nobre na consciência de cada um de nós. O artificialismo gerado pelo lucro faz de nós ratos sem pátria, corsários sem navios a roer.

Pergunta: Muito bem. O senhor ao escrever Humilhados e Ofendidos rendeu a Charles Dickens uma das mais ternas homenagens literárias da história. A humilhação é o combustível que faz girar o inconformismo dos mais fracos diante dos desmandos dos mais fortes?

Dostoieviski: Existe na humilhação um teor de anarquia que embrutece e maquia com cores de luto o ofendido. Se São Lucas acreditava no poder de redenção dos humilhados para logo se elevar a aldeão, a proprietário, isso deixa de ter seu valor genuíno e se torna corrupção.

Pergunta: O Sr. chamava suas crises epiléticas de “tempestades mentais”, até onde uma doença pode redimir e fazer vigorar um artista?

Dostoieviski: Sou filho da descrença e da dúvida. Frágil é o homem que se martiriza com o mal recebido por Deus e se compraz nas benesses ordinárias. Que atributos divinais pode haver nisto?

Pergunta: Até aqui, não sei o leitor, mas a sensação que me dá é que falo antes com um demiurgo do que com um homem que um dia foi de carne e osso.

Dostoieviski: [após um riso contido] A frugalidade de existir é o grotesco pelo avesso, por isso ri-te, se têm lábios para tanto. Refleti, se tem cérebro [para isto].

Pergunta: A inacreditável história da sua quase execução (ele foi condenado à morte e um minuto antes da execução, foi salvo da morte) lhe trouxe mais traumas ou o fortaleceu para encarar o absurdo da vida?

Dostoieviski: A sentença de morte nos foi lida; beijamos a cruz, quebraram uma espada nas nossas cabeças e recebemos as camisas brancas da execução. Fomos amarrados aos postes para sermos fuzilados. Nesse momento os tambores bateram a ordem de retirada… parecia que eu tinha sido extirpado dentro do ventre da minha mãe… não se pode emergir com forças de um trauma desse; morri na leitura da sentença, o que sobreviveu foi uma carcaça inanimada, nada mais.

Pergunta: Crime e Castigo tenta apenas reproduzir no mínimo o que o sistema financeiro do mundo faz no máximo ou é também um libelo contra os que não acreditam na redenção e no Salvador?

Dostoieviski: A personagem-chave do livro não é Raskolnikov e sua demência, sua fraqueza espiritual, mas o belo e o sublime que se ampara e se fixa na essência do homem quando ele se desliga do seu Criador, e comete os mais terríveis atos. Nada há de mais belo, de mais perfeito do que o Cristo Não só não há nada como não pode haver.

Pergunta: Sua psicologia é tida como “insuperável” por um filósofo posterior a você [Nietzsche]. A psicologia é aliada ou inimiga do homem?

Dostoieviski: Se bem intencionada, é aliada; se mal, gera guerra e desolação. Dentro do homem há todos os demônios que dão garantia de existência à parte mais vulnerável do ser, a descrença, de onde germina todos os infortúnios do que você chama de “difícil ato de existir”.

Pergunta: Uma lenda diz que “uma pena o matou” (diz-se que ele, escrevendo à noite, deixou cair a pena e esticando o braço para pegá-la, teve uma artéria rompida)Dosotieviski. Não é uma ironia que a pena que o salvou tenha contribuído para a sua morte?

Dostoieviski: É um assombro que tenha perscrutado até isso! A pena caiu; a fui resgatar. Pedi para minha mulher abrir uma folha qualquer do Evangelho; ela abriu Mateus, 3:14 “não me retenhas mais por uma hora”. Era um sinal do meu fim.

Pergunta: Sr. Dosto, muito obrigado pela palestra. Ficaria muito mais tempo aqui dialogando com o senhor. Mas em tempos de twitter e solidão, não posso me dar ao luxo de esticar tanto assim uma conversa, muito obrigado.

Dostoieviski: As exigências, pelo que posso depreender, ainda mutila a todos os homens.

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