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Carimbo e Macarrão

“Qual folha que vaga, sem rumo e sem vida, no espaço perdida, sou eu a vagar, qual chuva correndo, nos olhos do tempo, nos mares crescendo sou eu a chorar...”.


Bom dia, como está aí? A cadeira está confortável? Contas em dia, coração a bater no ritmo do amor? Não? Puxa, mas o que há? Alguma dor de cabeça à toa ou viu um filme à toa? Enquanto você pensa nisso, deixa eu te falar o que aconteceu quando resolvi vagar, por aí, tal qual a folha acima.


Vagava sozinho pela rua, na hora da fome. Estava nas imediações da Praça da República, que está em obras. Lá existe uma feirinha, que vende artesanato, brinquedos, sofás, comida típica.


Parei numa barraca. O cardápio, feito bandeirolas de São João, tremulava num barbante. Pedi yakissoba. Pedi, não, pensei em pedir. Antes tive de ficar na fila (formam-se filas para comprar yakissoba). Chegada a minha vez, me atendeu uma senhora, óculos escuros, negros.


- Quero um yakissoba.


- 6 reais.


- Com bastante molho.


- 6 reais.


Dei-lhe os 6 reais não duplicados. Ela tateou as notas, sentiu nas pontas dos dedos as informações necessárias; tinha a habilidade de um pianista que é íntimo das teclas do piano, o sustenido.


- Obrigado. Próximo.


- Mas, e se não for 6 reais?...


- Confio em você, meu filho. Próximo.


- Mas...


Não havia porque de “mas”. Ela confiou e fim. Derreti o macarrão nos dentes e sorria quando mordia alguns pedaços de carne intrusa no mar do macarrão, mas o sabor mesmo estava em observar a senhora, o igual procedimento para com todos.


Outro dia tive de assinar um protocolo num cartório e resolvi brincar com a moça que me atendeu; devia ser seu primeiro dia no emprego, pediu para eu assinar o documento.


- Não sei assinar, nem escrever, tem carimbeira?


- Ah, você tá zoando comigo, né?


- Tô não.


- É verdade?


- Verdade.


- Caramba...


Pegou a almofada e, meio sem jeito, me deu a coisa para eu assinar. Diante da sua inesperada reação, não podia mais desmentir, enfiei com açúcar e com afeto o dedão polegar e o decalquei no documento, pronto, estava validado e autenticado. Agora tinha valor.


Saí do cartório com o dedo sujo e a alma idem. Rindo da minha própria patetice. A menina se divertiu. Ria enquanto eu andava. Onde já se viu fazer uma coisa dessas, dirá quem me lê.


Duas pessoas distintas, ambas operárias dedicadas para fazer andar as engrenagens do mundo em perfeita sintonia. Uma tateia notas e confiança, outra se diverte com um pateta qualquer que quebrou-lhe a rotina áspera de um lugar burocrático com uma ação inusitada.



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