Tomado de alguma melancolia, resolvi dispersá-la pelas ruas da cidade: ingressei pela Marquês de Itu, espiei a Dona Veridiana e tombei na Baronesa de Itu; ganhei a Av. Higienópolis, emborquei na Maranhão, tentei a Piauí, preferi a Sergipe, fui dar na Angélica e, reembocado na Higienópolis, dei de cara com o que pedia meu inconsciente: um cartaz do tricampeão mundial de Fórmula 1 Ayrton Senna da Silva.
Fitei-o, o macacão branco feito nuvem boa, o cadáver do piloto é que sorria, a foto captada com maestria pela lente de Norio Koike; estava ali o homem, apesar de morto, vivíssimo, vendendo botas da marca Diadora. Refiz o trajeto do olho, alinhei com o do pôster e calculei assim, “porra Ayrton, você se f...”, travei o pensamento como travo agora a escrita da palavra feia; o fim do pensamento era “se você tivesse vivo, poderia estar por aqui, desfrutando de um monte de mulheres lindas, carrões de todo tipo, viagens ao redor do globo, e que merda fez você, essa de se meter a morrer precocemente, deixando o mundo todo a tentar desvendar o seu mito”, mas o Ayrton é desse tipo de gente estranha que precisa morrer para ser imortal, e foi lá, cheio de pressa, morrer para nunca mais morrer, estourar os miolos naquela curva estúpida, e foi aí que...
... E foi aí que entendi que ele não se fodeu coisa nenhuma, fez foi um favor para si abreviando sua agitada vida: morto, não precisou ver aviões se debruçando sobre prédios indesviáveis em New York, outros que pousam nas selvas ou não freiam quando pousam; bombas a implodir trens, pontes, mesquitas, sinagogas, eleições, igrejas africanas, a milenar Cabul e a não menos Bagdá, tudo temperado com muita víscera humana; sem contar criança arrastada feito um novo Heitor carioca num carro com rumo e sem governo, outras queimadas num ônibus, acidentes, terremotos, tempestades, tsunamis, mensalões... Será que ele saiu perdendo tendo abdicado da vida?
O Tricampeão vivia, estava lá, repleto de pose, garoto propaganda obediente, sorriso de quem está prestes a rever a mãe depois de longo tempo ausente; eu é que estava morto, confinado no meu próprio corpo, absorvendo tragédias. O campeão vive; um campeão não morre jamais.
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