Às 19h26, desço a Joaquim Eugenio de Lima a pé, ou “de a pé”, como se diz na infância; às 20h00 em ponto, tinha um encontro com Michelangelo, que me esperava no MUBE. Chego à Alameda Lorena, carros, buzinas, semáforos, tudo muito cidade; espero a luz verde para cruzar a 9 de Julho: uma menina equilibra com excessiva habilidade um bastão em chamas, chacoalha-o, atira-o ao céus, zomba dele, joga-o às costas, executa uma porção de manobras com perícia artística, faz volteios, cabriolas sem fim, espera um agrado, uma moeda, e só recebe dos motoristas a indiferença, arma que fere de morte qualquer artista. É incrível que sua tamanha habilidade não seja aplicada para tirá-la das ruas, mas a vida tem desses fetiches, não se pode elucubrar.
Em poucos minutos encaro com temor a Rua Venezuela, depois a Panamá, aqueles casarões imponentes me botando medo. Perpasso com delicadeza as calçadas onde seguranças me investigam com tímida precaução, e logo retribuo o afeto com o servil baixar de cabeça, como a confirmar e reconhecer a autoridade postiça dos vigilantes. A certeza de que, naquele ponto, a cidade não mora mais em mim, fica patente diante da imponência desértica daquele bairro elegante onde não se anda a pé. Se não morasse no país e aqui estivesse só a passeio, suporia fantasma aquele lugar, abandonado e habitado só por almas de terno preto.
As 20h00 vão chegando, me perco na Av. Brasil. Não havia a quem perguntar onde era a Rua Alemanha, 221, endereço eterno do MUBE e provisório do poeta italiano. Cogitei abordar um motorista, mas o temor de eles me tomarem por assaltante me fez recuar do intento, e isso apesar do traje, a calça jeans entre nova e desbotada, o relógio, o tênis e a camiseta, vestuário que me faria um comum num Shopping Center, mas um perigo numa rua onde só circulam carros e medo.
Chego na Av. Europa, deparo com uma agência de carros Ferrari, pessoas paradas defronte a loja, cobiçando aqueles mitos, tirando fotos com o celular. Logo parei também, vislumbrei as machinas, sonhei-me a bordo delas, uma loura de cabelos belos no banco do carona. Desperto do devaneio e sigo em frente, entro feito cego no Museu da Imagem e do Som (MIS); já eram 20h00 em ponto. A recepcionista, que teimava em ser bonita, me informa que o evento de Michelangelo é no MUBE, “no outro prédio, senhor” --- agradeci com um “obrigado, senhora”, apesar da idade dela.
Chego, enfim, no MUBE para ver Michelangelo; tem umas réplicas dele lá, uma só carta original... o objetivo da visita era uma aula sobre Renascença: “O HUMANO E O DIVINO NA PINTURA E NA MÚSICA”, ministrada por um professor da USP, o sobrenome e o kipá denunciando sua fé. Entro no auditório, muita gente elegante, senhoras muito europeias, senhores muito distintos, sotaques de além-mar. Ao iniciar a aula, o professor tropeça em alguns conceitos históricos sobre o escultor e sobre os artistas medievais; lembro do primeiro capítulo de “Budapeste”: “(...) nos ambientes que frequento, onde discorro em voz alta sobre temas nacionais, emprego verbos raros e corrijo pessoas cultas, um súbito acento seria desastroso”. Respondo em silêncio as perguntas feitas pelo professor; não ficaria bonito, além de estar ali, ousar me insurgir como sabichão --- ninguém gosta de sabichões, ainda mais desconhecidos chiques.
Alfim da aula, espreguiço-me feito gato e dou o fora do lugar, meio assim à francesa, refaço todo o trajeto a pé, apesar do frio e da garoa, apesar do passe de ônibus que continha algum crédito. Na Al. Campinas, paro num posto de gasolina que vende sorvetes, fico longo tempo falando com um frentista que reclama do tempo, do salário, e reclamaria da sogra, da mulher e do INSS, se eu não fosse embora logo, lambendo uma boa bola de sorvete de morango, apesar do preço que era muito salgado.
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