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A Carta

…Quando saiu do quarto, escorria do semblante dela resquícios desconectados dele; logo, por efeito de grafologia, tomou seu pulso, acariciou o contorno da letra esquiva, que parecia trepidar não porque fora escrita no fugaz instante que sustenta um sismo, mas porque era gerada por abalos da emoção. Ele lia o escrito desviando o olhar do que as palavras introduziam na retina, antessala cerebral; queria decifrar o que diziam os tremores, o que precedia o ato da tinta virar palavra, como quem intenta descobrir os pensamentos do interlocutor antes que sejam codificados em verbos obscuros. Ele apaga a TV e o Sol ao fechar a persiana; som e luz borravam a concentração. De todos os sentidos, o tato era o mais ativo e sensível; ao tocar nas letras, era-lhe transmitida a sensação que se deduz morta quando escorrega do cérebro para o punho, e é a alquimia do espírito vertido em matéria. Ela, dele tão distante, queria a reconciliação, ou era o fim, que ele não entendia por exceder em ouvir ecos onde só cabia saudade, e ela dele tão distante.


Refugiado, como atraindo angústias, pretere o desejo, deita fogo à carta, e só o papel crepitava: as palavras bailavam, insensíveis à ruína, e mesmo destruídas permaneciam ali, intactas, suspensas no ar, feito um fantasma vernacular. O coração ansioso descamba para o descontrole, uma carta escrita com palavras trêmulas é incrível que afete um homem, que o abata pelo conteúdo que ele supõe enigmático; e se estivesse tudo lá, às claras, letra por letra, cumprindo exatamente sua função de exprimir com clareza tudo o quanto se quer dizer, vai o homem e impregna no texto um sentido metafísico, quer enxergar nele uma epifania ou uma solução; não entende a arte do simples, do correto e do direto, anseia pelo inexplicável, forma mais primitiva de se enganar. Delira.


Todo ele era transtorno e solidão. Bole na estante empoeirada à procura de um dicionário que explicasse palavras provindas da comoção; pegou o Hamlet e o leu de pé; usava o livro como esgrima, simulando os passos do príncipe trágico, desviando de si a ponta da espada envenenada, e a cena, que se pretendia teatral, só não se tornou grotesca porque não havia espectadores. Não há ridículos na solidão.


Transluz nele a impotência do réu que se acha indefeso diante do tributo que tem de pagar à sua vítima. Cumpre a ele ir em busca do sentido, a verdade da carta; ostenta um copo de vinho, prevê o calor que emanará dele, e logo percebe que confunde a origem das coisas; abandona o vinho sem tê-lo sorvido; sente-se perseguido, olha atrás de si e são as palavras flamejantes que o perseguem por entre a casa. Finda viagem no quarto de dormir, observa a amada desnuda, entregue à fatalidade do sono, chega seu rosto ao dela, cutuca-a com o roçar da barba hirta; ele espera que ela se irrite, acorde aflita: – A carta, o sentido da carta, por favor, eu imploro; não quero mais esse negócio de você longe de mim. Eu negocio esse negócio de você ficar sem mim.

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