Baruch Spinoza (1632-1677) é uma espécie de deus que eleva e corrige as falhas do mundo – as contestando. Sofredor como mor parte dos grandes pensadores, ele se destaca por crer em Deus ao mesmo tempo em que destrói o deus criado pela imaginação, ganância, demência e sentimento de orfandade dos homens.
É tão espetacular seu pensamento sobre destino, fé, religião, lugar do homem no mundo, Deus, Natureza, convencionalismo etc, que fico em dúvida se algum deus usou seu corpo raquítico, a pele cor de oliva, para revelar-se aos homens de nenhuma vontade.
Nenhuma porque a mesma seita judaica que mandou à cruz o gentil Cristo mil e setecentos anos antes, “excomungou”, (para judeus o equivalente é “chérem”), Spinoza por conta da heterodoxia do seu pensamento muito, muito, infinitamente mais que brilhante: divino. Qual autoridade secular suporta a beleza do divino sem a querer destruir?
Naturalmente, ele foi expulso da cidade pela corrupta elite judaica da poderosa Holanda do século XVII. Só não foi pendurado numa estaca porque os tempos eram outros e faltou à fúria judaica um novo Pilatos...
A repetição do fenômeno evidencia que o Cristo, conforme “previu” Dostoieviski no “O Grande Inquisidor”, Jesus seria tranquilamente levado à execução novamente caso tivesse a audácia de voltar à Terra e desafiar as leis dos homens, ou pior, suas zonas de conforto, este novo credo ausente de símbolos e liturgias.
Há muito da natureza de Cristo em Spinoza.
Para este semi-holandês de origem portuguesa (!) (ele dizia pensar melhor na língua de Camões, veja só) toda a matéria que há são aspectos distintos da mesma substância, é a imanência, termo potente que sobreleva um modo tranquilo e sereno de desmistificar mitos intocáveis. Isso inclui o Deus-Criador. O filósofo tem toda a razão que disponível no mercado das ideias. Ora, sendo Deus o pai de tudo, Ele É o Tudo, indistintamente.
Quando o poeta Wiliam Blake provoca o Deus judaico-cristão, acusando-o de ser Nobody Daddy (Pai de Ninguém) ele quer na verdade infundir em nós a ideia de humanizar este Ser Supremo, tão vilependiado por seu algozes disfarçados de papas, sacerdotes, pastores, ministros da fé. O poeta, ao afirmar tal petardo, não quer rebaixá-Lo, mas elevá-Lo ao um estágio de superioridade da compreensão humana, como aliás intenta Spinoza.
Em seu livro póstumo, editado por seus amigos três meses após a sua morte, “Ética”, este sumíssimo estilista do pensar nos coloca na dimensão do real, apontando os anacronismos das Escrituras Sagradas (ele nota que termos usados no Pentateuco sequer existiam no tempo de Moisés), bem como as falhas nas doutrinas da fé, muito mais apegadas à materialidade do que à transcendência do celestial.
Para complementar seu colossal espírito libertário e libertador, igual ao seu colega Aristóteles (Shakespeare idem), ficou séculos obscuro, para ser resgatado das sombras por mentes como as de Hegel e assim ajudar a iluminar este celeiro de trevas que chamamos de mundo.
Chama atenção que o pensamento de Spinoza, contra-majoritário, ainda mais que se opôs a credos políticos e religiosos, continua perigoso. Pode piorar caso floresça em épocas hostis: a depender do poder reinante, sua pele e voz correm grave perigo de silênciar e queimar.
Este rapaz pacato e de pensamentos febris foi polidor de lentes, professor particular e sabe-se lá quais mais subempregos teve de fazer para manter a carcaça de pé: não admira, Nicola Tesla trabalhou por meses como peão na construção civil, nos EUA, Wittgeinstein trabalhou como porteiro, em Londres. Ao recusar um emprego mais nobre como professor universitário no que era o então império germânico, atual Alemanha, ele engrandeceu ainda mais sua amplitude já descomunal: recusou por entender que a função poderia obliterar e impedir seu livre pensar.
Spinoza deixa um legado imenso que extrapola o pensamento filosófico: ele é chamado de príncipe dos filósofos pelos seus pares, tem sua estátua em bronze eternizada por gente importante como Ernest Renan. Sua contribuição ao pensamento ocidental está muito em voga e atual, a saber que vivemos num momento bastante crítico, em que ideias são tomadas como afronta e insulto para aqueles que, em vez de apenas discordar, quer destruir aquele raciocina apenas um pouco a frente das migalhas que a informação entrega, querendo fazer disso o mais puro saber, o mais belo conhecimento.
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