Posted On 4 De Janeiro De 2012 By Admin
“Ergue os braços, vibra, é a vitóra!, Ayrton Senna, do Brasil!! Campeão mundial de 1988!!!”
Vi, revi e tresvi o documentário do diretor anglo-saxão Asif Kapadia, primeiro no cinema, depois em casa, depois no pensamento. O filme reconta a história do homem tricampeão do mundo, detentor de uma capacidade de guiar carros tão prodigiosa, que sua perícia só pode ser comparada à de Mozart compondo.
Ayrton Senna guarda dentro de si o que Aristóteles chamava de “licor sutil”, aquele fluido misterioso que faz de meros mortais homens além de homens. Senna não se interessava por nada que não fosse a perfeição, tal qual fazem os gigantes de qualquer área, com a diferença de que, se Einstein errasse uma equação, poria em risco uma reflexão; já Ayrton, a vida; vida que ele acabou por doar pela insanidade que cerca o mundo onde o capital vale mais do que tudo.
O piloto era dotado de um dom extraclasse para exercer a difícil arte da pilotagem. Num grande prêmio em Mônaco, mesmo a quase um minuto de vantagem sobre o segundo colocado, ele arriscava ainda mais a cada volta em busca do além-limite: estava, segundo o próprio, “entrando em outra dimensão”, e então, já beirando o delírio, bateu e saiu da corrida.
Reside aí, nessa busca insensata que mistura fé e prodígio, o maior erro do piloto. Ele tinha tanta fé, acreditava tanto nos desígnios divinos para sua missão, que seu maior rival, Alain Prost, certa vez o censurou: “Ayrton tem um problema, ele pensa que pode se matar porque acredita em Deus”.
O filme magicamente costura a imagem de um rapaz exemplar dentro e fora das pistas, certas vezes exagera na hagiografia, esquecendo as trapaças e os egoísmos que também marcaram a carreira do piloto; no entanto, ao participar de uma atividade tão competitiva e voraz como a F1 e não sendo também um lobo, é-se devorado na primeira curva.
E Senna era um moleque que se divertia com os carros. Não fosse a FIA um antro de corrupção e politicagem, ele teria sido tetra e, talvez, até pentacampeão, mas o destino vingador não quis lhe dar apenas bravos adversário nas pistas, como Prost, Piquet, Rosberg, Mansell, Lauda, Berger e Schumacher; botou também cartolas para obnubilar seu caminho, como o déspota Jean Marie Balestre.
Ao fim da fita, com o piloto visivelmente abalado pela série de acidentes daquele fatídico fim de semana em Ímola, a irmã do campeão revela que ele, ao abrir ao acaso a bíblia, recebeu uma revelação, a “de que Deus iria lhe dar um presente”, no caso, a morte dele. A fé e a ignorância são filhas da mesma família. Deus, creio eu, jamais daria como presente a alguém uma morte estúpida e violenta como a do Ayrton, dilacerado estupidamente por uma barra de metal no crânio. Dostoieviski, antes de morrer, pediu à esposa para abrir o livro sagrado ao léu. E interpretou no texto de Mateus sua sentença de morte.
Lembro que às 11h17 daquele triste domingo, o narrador Galvão Bueno, com a voz embargada, com Ayrton supostamente em coma no hospital, sussurrou assim que terminou o GP:
“…Lute, Ayrton, lute muito, como você sempre lutou na pista; seja bravo, como você sempre foi, e que Deus esteja contigo”.
Estava.
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