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Rumores da Cidade


Acordei à véspera da manhã e decidi captar a cidade, despi-la de seu pudor, sua violência de donzela viril. Caminhei sem deriva pelas ruas centrais, pontuando-as com a memória dos transeuntes, todos dotados de muita pressa, pressa de esperar, pressa de parar no semáforo, pessoas com pressa de ficarem paradas.


Homens de gravata rebolavam o acessório pela vias, havia vento; mulheres de compleições difusas, perenes de atenção, bailavam por entre o tumulto, o remoinho no Viaduto do Chá, a ponte incorporada de humores humanos refletiam nos passantes a história e as pegadas sulcadas na estrutura pulsante da construção.


Ciganos, cegos vendendo esmolas, vendedores de parafusos e de sombrinhas, antenas de TV, capas de celular, pilhas, microfones, brinquedos eletrônicos, alguns vendiam necessidades, ou as compravam, já que não se identifica no rosto de um homem aquilo que ele deseja estampar. As cores tingiam um arco-íris horizontal, quando uma outra destoava da paisagem, era o enfado da retina, denunciando a ida para outra fronte.


A população de mendigos, o amparo sutil das marquises, algumas altas demais para os proteger da chuva ou do orvalho, esse poético fenômeno atmosférico banido da cidade, todos muito iguais, alguns sorridentes apesar de falta de dentes; confuso, capto um rapaz vestido, vários rasgos no jeans e a roupa do mendigo ali inteira, desafiando a convenção e a moda. Perpassam todos, ninguém olha, ninguém fala, é solitário andar por entre a gente, o que se ouve na cidade é um idioma coletivo, que se supõe zum-zum, mas é outra coisa, ainda órfã de um cuidado científico que o defina e lhe dê padrão; na falta dele o tomo por indecifrável não passível de enredo, desprovido de gramática, manco de compreensão.


Com o sinal ocular aceso, acesso as escadarias do metrô, um turbilhão se produz à minha frente, um mar de cabeças se anuncia ao declínio lento da escada que rola, como num funil de grãos dotados de vida treinados para entrar no silo, pessoas se acotovelam, repreendem-se mutuamente com a gíria do olhar, língua universal, se comprimem, se achatam, acham tão comum a rotina que são levadas aos vagões como as vagas que dominam o mar, que o levam de lá para cá de cá para lá num balé infinito, e são pessoas.


Careço de espaço, sou cuspido com violência na próxima estação, caio num bairro operário, que dista do centro da cidade menos por quilômetros do que por costumes, é outra etnia, diferente é a regra comum que os une. Reverto o trajeto a pé, sem achatos, há muitos carros nas ruas, todos muitos vazios, ou quiçá cheio da precisão de seus condutores. Marco o modelo de um, emparelho com ele, e saio sem arrancar, sem cantar a roda achatada chamada de pé, percorro cem, duzentos, muitos metros e o meu concorrente parece estático, preso entre vários cavalos, o julgo um pouco melancólico e por vingança expira enxofre no ar, possível vilão que baniu a procriação do orvalho, antes matinal.


Corrida vencida, chego o rosto na janela de um ônibus, apinhado de tudo, subvertendo conceitos da física, o descarto, emparelho com um homem que parece sorrir e me encanta o seu sorriso, quase vegetal, como uma flor que se dá a nascer sobre o pleno isopor, ele acelera o passo, não quer compartilhar o sorriso, é coisa muito preciosa para ser dada a distribuir assim meio de graça. Volto a casa, a cidade ainda fervilha dentro de mim, se me fosse dado o poder, reconstituiria as faces de todas as pessoas vistas, algumas muito carentes de si, para recompor o que eu talvez batizasse como genealogia invisível da cidade que nos rodeia. Despercebido de que trazia muita cidade dentro de mim sentei ao sofá. Presumi um rumor me apossar, e era o noticiário da TV, informando que fazia tempo bom, trânsito caótico, e que a tarde prometia, além do inevitável crepúsculo, uma pancada de chuva que ninguém informou se era bem ou mal-vinda.





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