... A casa do Oscar era o sonho da família...
A etimologia é a religião da Palavra. Com ela descobri que a palavra arquiteto tem no prefixo, grego, “arqui”, o “acima”, “superior”. Oscar Niemayer é superior na acepção plena da palavra. Às portas, ou “pórticos”, de construir um século de vida, o mega-arquiteto congrega em si todas as constâncias e exações a que se impõe um homem de alta índole. Não é rico. Erigiu obras da Argélia a Potsdan na Alemanha; soergueu do vazio uma cidade, Brasília, obras que somadas concretamente somariam bilhões de dólares. E não é rico. Fervoroso comunista. Talvez só ele e Fidel Castro Ruz ainda sejam comunistas. Ele não é rico porque é comunista ou é comunista porque não é rico? Casou com a secretária aos 96 anos, prova de que tem fé no amor e na longevidade.
Fico em dúvida ao saber sobre o que mais aprecio em Oscar; se seu espartano modus vivendi ou se sua obra de sintonia perpendicular: são ambas admiráveis. Um general (Maharbal) do grande Aníbal censurou o líder cartaginês por não marchar sobre Roma após a batalha de Canas dizendo que os deuses não podiam dar tudo ao mesmo homem. Parece que há em Oscar uma exceção à regra; deu-se a este homem o gênio e a sobriedade, espécie de contraponto divino à genialidade.
As edificações de Oscar alteram o ambiente, não dialogam com a natureza física ou invisível, elas criam um novo objeto de ótica que desafia a retina e deixa vago o conceito gostar/desgostar porque antes da apreciação vem a inquietação. Seu colega estadunidense Frank Lloyd fazia diferente; congregava a construção ao ambiente, como nesta casa:
Fallingwater house (ou Casa Kaufmann ou Casa da Cascata) (1936), Pensilvânia
Oscar com sua arte eterniza, transpõe e molda o material mais usado no século XX (o concreto), com sua usual bruteza áspera, em formas retilíneas que por violar o natural se pretende curvilínea quase a flertar com uma sinuosidade limpa, tratada como que por um esquadro flácido meneando sua dureza nas paralelas do improvável.
Dúvidas estéticas sobre seus edifícios há; como há quem não aprecie a poesia de Quintana, por entendê-la trôpega ou não entendê-la nada; mas elas, como os poemas concretos, sobreviverão à detratação e tudo: do espacial museu de Arte de Niterói à Catedral de Brasília. Se há um deus para os belos projetos, Oscar é decerto um de seus principais ministros.
A casa do Oscar era o sonho da família. Havia o terreno para os lados da Iguatemi, havia o anteprojeto, presente do próprio, havia a promessa de que um belo dia iríamos morar na casa do Oscar. Cresci cheio de impaciência porque meu pai, embora fosse dono do Museu do Ipiranga, nunca juntava dinheiro para construir a casa do Oscar. Mais tarde, num aperto, em vez de vender o museu com os cacarecos dentro, papai vendeu o terreno da Iguatemi. Desse modo a casa do Oscar, antes de existir, foi demolida. Ou ficou intacta, suspensa no ar, como a casa no beco de Manuel Bandeira.
Senti-me traído, tornei-me um rebelde, insultei meu pai, ergui o braço contra minha mãe e sai batendo a porta da nossa casa velha e normanda: só volto para casa quando for a casa do Oscar! Pois bem, internaram-me num ginásio em Cataguazes, projeto do Oscar. Vivi seis meses naquale casarão do Oscar, achei pouco, decidi-me a ser Oscar eu mesmo. Regressei a São Paulo, estudei geometria descritiva, passei no vestibular e fui o pior aluno da classe. Mas ao professor de topografia, que me reprovou no exame oral, respondi calado: lá em casa tenho um canudo com a casa do Oscar.
Depois larguei a arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim. Quando a minha música sai boa, penso que parece música do Tom Jobim. Música do Tom, na minha cabeça, é a casa do Oscar.
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