“É impossível ver esta tela e não se emocionar” disse eu um dia, para minha imaginação. Esta tela de Van Gogh é de sua fase pré-impressionista, um Vincent sem a influência japonesa e o sol do Mediterrâneo. Há nesta tela todo um contexto religioso que salta aos olhos. Os rostos embrutecidos dos camponeses, a simplicidade monástica da cena. Filho de um pastor calvinista, Vincent chegou a ser missionário na Bélgica, o artista vivia sob o signo da religiosidade.
A inabundância da luz desta tela, quase líquida porque débil, dá contornos tristes aos semblantes das personagens; o único rosto a ser captado pelos olhos da imaginação é o da menina de costas: a luz lhe bate de chapa e irradia as formas para a fonte de onde provêm os pensamentos. Monocromática, a tela é um milagre da perícia técnica de um pintor que contava apenas 32 anos de idade.
É uma tela religiosa. É o contraponto, a negação de uma tela, (afresco, em verdade) famosíssima que serviu de “inspiração” para tolices conspiratórias e que está na cozinha de uma igreja italiana: Santa Maria delle Grazie e que já operou seus milagres: foi bombardeada na Segunda Guerra.
Sem o patrocínio de mecenas da nobreza ou papal, Vincent recriou uma Última Ceia mais fidedigna e real que esta de Leonardo, sem a abundância de cor, imprópria à narrativa psicológica do quadro, ou os temperamentos intempestivos e confusos dos discípulos ou, o mais estranho, o rosto sorumbático de um Cristo decepcionado com a “revelação” de que seria traído; ele já sabia, logo, por que a decepção? De origens humildes, os discípulos estão trajados com opulência, a mesa farta (não há o tal “cálice sagrado” ou Santo Graal) é mais um instantâneo de uma briga numa festa que o de um anúncio duma agonia que se avizinha. A face andrógina de Jesus e o dedo em riste de João, como a censurar seu mestre, são patéticos.
Leonardo não gostava de pintar, a força de seu gênio irriquieto era mais dirigida para violar o desconhecido, a monotonia da pintura, horas a fio com modelos extáticos à sua frente, clientes autoritários e vaidosos, etc., talvez por isso vendo um Leonardo não nos transportamos para um mundo particular; é um mundo ordinário, com as distorções e vícios do mundo como já conhecemos, não nos deixa perplexos; quase não há alumbramento.
Já Vincent, mesmo para os não abençoados com a dádiva da imaginação, cria um mundo só possível nos nossos sonhos; é uma comunhão semelhante àquela que une a linha do mar ao céu no horizonte; é impossível o fato, mas os olhos negaceiam a realidade.
Supostamente pintando os, como ele, deserdados da terra, os náufragos da existência, Vincent rejeita o espiritualismo burguês da ceia leonardina, impregna vivacidade num tema vulgar, faz adrede um panejamento grotesco, usa um claro-escuro no limite da rouquidão visual; nos Comedores de Batatas não há metáforas: é olhar e deixar o quadro narrar a cena.
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