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O Nosso Guri




“O homem não é inteiramente culpado, porque não foi ele que começou a história, mas também não é inteiramente inocente, porque a continua”. O escritor franco-argelino Albert Camus disse isto não se sabe se quando ruminava um alento, ou des, ou se quando algo lhe feria a idéia. É um desses lampejos que fulminam mentes brilhantes.



João Hélio e Mateus podiam ser amiguinhos. João contava 6 anos, Mateus, 8. É desconhecida a idade da sucuri que atacou o pequeno Mateus no interior de São Paulo(!). Conhecida é a idade de 66 anos do avô que salvou a vida do neto, que estava prestes a ser asfixiado e devorado pela anaconda. Mateus foi vítima da natureza, que é mãe e inimiga a um só tempo. Já o outro pequeno foi vítima de outro tipo feroz de natureza: – a humana.



João foi arrastado por 7 quilômetros dependurado pelo cinto de segurança do carro de sua mãe, roubado por delinqüentes, até então, até ali, disfarçados de simples delinqüentes. Para desespero da mãe e do próprio Deus, eles não eram delinqüentes. O fim dos tempos se dará quando o homem conseguir a proeza de desesperar o Criador. O noticiário policial externou detalhes impactantes da cruel morte, a cabeça decepada, restos de massa encefálica pelo chão, joelhinhos inexistentes, mãos sem dedos, a terra como um gigante ralador de gente, seus pedaços espalhados pela cidade.



Àquele instante que precedeu sua morte, não o mundo, mas o próprio corpo do pobre João era-lhe um lugar hostil. “Quero me livrar deste corpo antes da dor”. A morte dele não é a morte dele, é a morte da razão. Um tal caso desse, além de causar uma intensa e inócua convulsão social, expõe a nu nossa inoperância e conformismo diante da banalização da tragédia da violência urbana, é a aceitabilidade do mal, como aquele ente malquisto que se instala na nossa casa e lá fica morando por inércia e fatuidade do dono da casa.



Este diálogo deve ter acontecido entre a mãe do João e seu pai, e entre vários pais e mães deste país inerte na dor e ágil na frivolidade, aconteceu num jantar ou antes de dormir, defronte uma tevê acesa:



- Você viu que barbaridade em Bragança Paulista? Meu Deus, como podem cometer uma crueldade dessas com uma família, queimar uma criança viva, não tem nada pior!



- É verdade, diz o pai, um horror mesmo, olha essa atriz, ela não está um pouco mais gorda agora?



Até quando? Até quando iremos permanecer indiferentes e apenas lamentar a tragédia alheia que também é nossa? Até quando iremos ficar assim, como eu, aqui sentado, inoperante, escrevendo sobre mais uma calamidade enquanto rebeldes assolam a relativa paz social?



Jõaozinho não pode ser apenas mais um mártir transubstanciado em estatística com o passar do tempo ou em tema de conversação entre colegas de trabalho, ele tem de ser a gota na borda do copo que há tempos já transbordou.



“E ao sentir também sua mão vedar/Meu olhar dos olhos seus/ Ouvir-lhe a voz a me embalar/ Num acalanto de adeus.../Dorme menino levado/ dorme que a vida já vem/ teu pai está muito cansado/de tanta dor que ele tem.../Dorme meu pai sem cuidado/ dorme que ao entardecer/ teu filho sonha acordado/ com o filho que ele quer ter...” – Chico e/ou Toquinho.





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