Sabe quando a arte solapa algo teoricamente maior? Poucos sabem onde fica a Noruega, qual sua cultura, o que produz (exceto o bacalhau), que língua se fala nesse lugar remoto não obstante ter a Europa como endereço e ser uma das mais prósperas nações do mundo, - e ter na social-democracia um modelo a ser seguido.
Pois bem. É dessa terra distante e gélida que nasceu um dos maiores ícones plásticos de todos os tempos, concebido em fins do século XIX, e popularíssimo em todo o XX: "O Grito" de 1893, pintado pelo expressionista norueguês Edward Munch (1863-1944) é esse fenômeno que atropelou as barreiras nacionais e se tornou um símbolo mundial.
O que seria esse grito?
Importante ressaltar que o artista não quer realismo imagético nem pretende um mundo onírico como o dos impressionistas e/ou dos surrealistas, mas um híbrido que congregue as duas possibilidades: ser real e fictício num só tempo.
A expressão mumificada da personagem sugere uma infinidade de possibilidades; há uma série de explicações alegóricas de cujo lugar-comum quero fugir. Talvez esta tenha sido a primeira obra a retratar o homem moderno na inteireza de sua decrepitude.
A cor do rio é azulada; o azul é fortemente associado à tristeza-melanconia, tanto que no inglês "sad" (triste) pode ser tomado por "blue" igualmente triste. Toda sinuosidade de um céu crepuscular pode ter até uma explicação científica, uma vez que pesquisadores descobriram que houve uma grande erupção vulcânica nas cercanias de Oslo à época da pintura da tela. Tal prodígio também pode sugerir que a natureza estivesse a reclamar os infortúnios causados pelo homem à sua filial terrestre, mas são apenas meras suposições.
Como em "A Metamorfose" de Kafka, tudo pode ser interpretado sem a censura do "certo ou errado", a personagem transformada em inseto pode ser uma crítica ao capitalismo, à intolerância homossexual e demais cogitações; em O Grito ocorre o mesmo; olha-se o quadro e depreende-se dele muito menos do que ele quer infiltrar num primeiro olhar.
O que é absurdo, a meu ver, não é o grito em si, o desespero, e mais ousado ainda, não vejo traços psicológicos de um horror pessoal na personagem, exceto pela face sem cabelos, indicando a falência do corpo, dado que pode até ser visionário, uma vez que antecede os efeitos terríveis da quimioterapia. Eu enxergo ali a expressão de uma agonia externa, ela está horrorizada com os desmandos dos homens, suas guerras, suas violências; não somos nós que o observamos e sim ele que nos observa, como a cobrar uma atitude mais digna perante os semelhantes e também à natureza, que mais tempo menos tempo, acaba por cobrar os malefícios que fazemos a ela, e o preço é alto.
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Encerrada esta sessão de "análise" dessas cinco grandes obras, agradeço os 46 emails recebidos e os 11 comentários postados no site. Espero ter contribuído para a apreciação da arte que, como queria Dostoieviski, salva e nos reabilita enquanto seres condenados a viver num mundo cujo sentido está impregnado de absurdos, dores, calamidades e tragédias. Esses talvez sejam o alto tributo que temos de pagar por um ou dois momentos de prazer. Confesso que fiquei ansioso diante do desafio que me impus; escrever sobre arte não é fácil, requer mais que conhecimento, requer uma sensibilidade só possível em artistas genuínos, de cujo time, não sou titular, só um mero torcedor. Não raro me pegava no meio do dia tentando resolver alguns detalhes de cada tela, que me fez companhia durante toda semana, e que no fim, pude compartilhar com você. Bom final de semana a todos, meus queridos.
Escrito por alex bezerra de menezes às 23h10
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