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O Dia Em que Fiz o Bem-te-vi Voar em Pétala





É muito comum e até natural que vocês não saibam o que eu fiz neste fim de semana. Se isto fosse uma aposta valendo um calote, você decerto apostaria que eu fui à exposição em comemoração aos 60 Anos do Masp. Ou visitar um parente, daquele tipo de parente que nunca incomoda porque mora num cemitério. Não tente adivinhar. Não gosto da palavra “adivinhar”. A raiz latina divinare tem uma conotação estranha, olhe o que diz o dicionário: “conhecer o passado o presente e o futuro por meio de sortilégios”. Sortilégios. Paciência, vamos lá de novo, latim também, sortilegiu: “malefício de feitiçaria, bruxaria, maquinação”. É obvio que se você quisesse uma aula de etimologia não iria vir aqui; não me perdoem nem me comprem. Vinguem-se com o silêncio.


Chupei cana. Cana. Você jamais iria descobrir. Cana meus caros. Dessas que nascem como paliteiros com ímpetos de furar o céu, mas se contentam em furar a nossa pele com suas folhas que serviram de inspiração para o inventor da navalha. Fazia tanto tempo que eu não fazia isso que eu nem sabia mais como era; se o dente aceitaria fundir-se àquela fibra crocante e úmida ao mesmo tempo, doce e bagaço no mesmo tom. Sentei por debaixo duma amoreira (amoreira!) e me esqueci do pagode que comia solto no sítio, vez que a cada mordida as explosões da cana na boca infundia no ar um contraste com o pagode e o que eu ouvia era metamorfoseado numa lírica que ainda está por ser escrita.


Gente urbana é assim, fica abilolada (abilolada!!) quando morde uma simples cana, achando que aquilo é a quinta-essência, um néctar rural, uma poesia mesmo. Senti-me um bruto, quis me livrar da casca citadina em que estou enclausurado; pus os pés na terra, subi num pé de mangueira, ameacei um bem-te-vi com um olhar mais agudo, quase de encanto, que muito o aborreceu, porque voou em ziguezigue, feito uma borboleta de penas. Perguntei ao caseiro, já que não conheço as técnicas de vôo dos bem-te-vis, se esses bichos voam em linha reta ou como pétala, sem governo. Ele confirmou minha suspeita e disse que eles só voam assim quando se sentem ameaçado por um predador. Senti vontade e a lágrima de chorar.


Em plena estrada na volta a casa senti todos os perfumes que a memória já esquecera pela falta de uso. Assim que vi a Marginal do Tietê, senti a impotência potenciar seu poder sobre mim; vi uma garça branca branca branca audaciosa audaciosa audaciosa, cingir a beira daquele lamaçal, negro preto escuro, parei o carro quase ao seu lado e ela nem deu por mim, um lamento. Aquela garça sem graça no meio daquela desgraça, seria uma graça se não fosse já tão urbana quanto eu; um dia, distante dia, ela fora parente daquele bem-te-vi arredio.




Escrito por Alex Menezes às 22h49


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