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Abelha Julieta



Imaginem (tudo é imaginar) um diálogo entre Romeu e Julieta que por algum tempo resolveu abandonar a Romeu por tê-lo achado por demais chato ou obsequioso e, principalmente, por ter recebido uma profecia de que seu amor em comum os levaria à morte precoce; por óbvio o diálogo é naturalmente vacilante; não é a pena de Shakespeare que está em ação.



- Bela Julieta, perdoa este meu desalento, mas não te posso perdoar a ausência...


- Esquece e perdoa, amado Romeu, tudo fiz na boa intenção de preservar a nossa vida, quando menos nossa amizade...


- Tu sabes que não há entre nós amor e ainda menos amizade, apenas um contrato para desunir nossas famílias.


- Expirou o nosso prazo, bom Romeu, agora só te quero a vida preservar.


- Por que da ausência, folguedo dos meus sonhos, divina Julieta?


- Não sou mais Julieta, agora sou para ti Abelha: Abelha e nada mais.


- Não alcanço a razão da mudança, meu raro fragmento estelar...


- Hás de entender, querido Romeu.


- Tua longa ausência te tornou estranha, mas as palavras são as mesmas; singelas e dulcíssimas.


- Não, não e não. Minhas palavras entram como espinhos no teu ouvido, bem sei!


-É necessário o espinho para a proteção da rosa; e é em rosa que se transformam tuas palavras súplices.


- Triste consórcio o nosso; na produção deste jardim entra tu com as flores e eu com os espinhos.


- Lua plácida, dizes brevemente o motivo de teu silêncio, antes que o pó luminoso dos teus pensamentos penetre fundo o âmago do meu ser.


- Escuta, principesco Romeu: é fazer diamantes com poeira de argila se tentares penetrar os meus segredos.


-Mas o tempo ausente, as sensações!


- Tudo é resolução do tempo. Minha ausência se fez necessária. O silêncio falou por mim. Ele não é uma mão invisível como o supôs tu.


- Silêncio vão que pulsas nas entranhas da minh’alma torpe e enfraquecida, leva contigo essa Abelha e traz de volta a minha etérea Julieta!


- Romeu! Romeu! És tu o culpado da minha fuga e do meu exílio; cala-te e ouve-me; ouve-me, ouve-me, ouve-me...


- Infernos incandescentes, demônios execráveis de ódio e solidão, levas embora o silvo irriquieto e feiticeiro desta impostora!


- Presumes com rancor minha presença!


- Sentes o meu sofrimento, vil farsante! Achas nele uma gota de rancor e buscarei o consolo na morte que me espreita!


- Quedar-se na morte!


- Amável amiga, aflição das minhas noites! O tempo que fiquei sem ti retalhou em postas meu coração! Andei às tontas pelas ruas de Verona, pelas noites insalubres, pelas tardes indigentes, nos arredores do teu rastro irrastreável; afligi-me com a pena amarga do teu ir-se, murchei as pétalas das flores que toquei, vi morrer os dias com medo do seguinte que estava por nascer e onde estavas tu pobre querida enquanto os gusanos devoravam minhas vísceras na indiferença a que expus meu corpo febril?


- Estava a velar por ti, dramático Romeu! Pois se as lâminas do tempo e se os vermes vorazes fatiavam teu pobre corpo é porque foste negligente contigo mesmo!


- Oscila em mim os teus gestos e tua fala; prevejo o escárnio que estás a destilar, afasta-te de mim!


-Esse amor deletério te corrompe e cega e por isso não percebe o meu afeto.


- Falas em afeto! Oh víbora senil! Tu não sabes a agonia de um amor não retribuído! Um sono sem sonhos! Por que deuses imprestáveis, por que deixastes macular meu coração com o amor de Julieta?


- Deliras doce Romeu. Sendo eu uma impostora não sabes a quem odeias, se a mim ou se a verdadeira.


- Grande crime é não compreender os efeitos do desamor.


- Romeu, estou aqui de volta, falar-te-ei com ternura, me assentarei ao teu lado, mas sem meu amor...


- Tua presença só não me basta, farsante que sejas, tua presença só não me basta.


- Tudo te contarei por fim: previ o nosso cruel destino, iremos morrer envenenados e para te preservar a vida, abro mão do nosso amor.


- Tolos prognósticos falsos! A morte não faz parelha com o amor!


- Tolo! Tolo! Ó tolo Romeu, antes te contemplar em vida a arriscar o propósito da obscura morte!


- Se crês em vaticínios, por devoção e amor te devo seguir e ainda que me sangre o peito, quieto irei consentir.


- Sim meu bom Romeu. Ainda que nos maltrate o destino, mais importante que amar é viver.



E assim foi salva a vida dos dois mais célebres amantes de Verona e de todas as Veronas desse mundo, pois a volta de uma Julieta ausente faz cessar certa privação num Romeu qualquer, ainda que não seja uma volta para amar; a volta de um alguém querido sempre é motivo para se regozijar.







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