Suponhamos que num lugar chamado Cidade da Higiene, uma mocinha seja atacada a golpes de faca peixeira, dessas que destrincham peixes e gente. Morre a moça. Mas morre-se em toda parte, pensará alguns. É mocinha da periferia e esse nome Cidade da Higiene não garante higiene alguma ao lugar; igual Jd. Ângela; Ângelas lá se pode achar, mas ganha uma floresta quem achar uma árvore ali plantada. Não há jardins nesses jardins. Só pode ser por brincadeira que os empreendedores batizam esses lugares com nome “jardim isso”, “jardim aquilo”. 22 anos a moça, uma vida inteira para viver, o rostinho sardento e miúdo, algumas nervosas prestações das Casas Bahia à espreita; tinha pela frente uma carreira com dificuldades sem fim.
Como? Não achou nada de extraordinário nessa breve biografia? Imagino o que pensa você; a periferia não tem outra utilidade senão a de fazer sofrer seus perféricos, e a faca, desde sua invenção, não tem outro oficio mais nobre que não o de perfurar os buchos periféricos desse mundo.
Mas calma; vamos dar um verdadeiro brilho a esta tragédia.
Higienópolis, 02 de Agosto de 2006
Uma moça de boa estirpe, moradora de um bairro de classe média alta, estudante de Direito, 22 anos, sofre por parte de um maníaco tentativa de latrocínio e entra em óbito após ser atingida por objeto pérfuro-cortante. Objeto pérfuro-cortante. Que Lindo! Não ganhou outra cor? Não, a biografia da moça não, o local e as circunstâncias do assassínio é que deu outro tom…
Quantas facas são candidamente inseridas na barriga das pessoas diária e religiosamente por motivo, futil, torpe, grave ou por mera anedota? 300? 2.635? Difícil estatistica. Ninguém em sã consciência vai se dar ao trabalho de publicar no jornal que um sujeito morador da área equatorial sul, latitude 53º, na parte setentrional de Cabrobó foi persuadido por um amigo ou adversário a unir sua boa e amiga barriga à ponta afiada de uma faca peixeira; agora, se tão raro fenômeno vier a ocorrer num bairro chiquetésimo da maior cidade do país, aí é manchete para o horário nobre.
A moça que morreu foi apenas o instrumento da notícia; ela em si não importava nada, o que sublinarmente foi noticiado era que o crime aconteceu nas cercanias da casa do dono do jornal e da tevê que deu a notícia ou do comandante da polícia que devia policiar, do prefeito que devia prefeitar, do governador que devia governar, do banqueiro que... bem, esse ninguém precisa mandar banquear; ou nas proximidades da casa do próprio diabo, quem é que sabe o Cep do capeta?
A quem interessar posssa e despossa também: para aquele que imaginou que o primeiro bairro citado é um lugar fictício, Higienópolis vem do grego e quer dizer, literalmente Cidade da Higiene.
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