Parece que era o apóstolo Paulo que confessava que gostava do bem, mas praticava o mal. Não censuro o cristão: o mal é mais fácil de ser feito, às vezes mais saboroso, e não raro pouco saudável, mas quem se importa com o saudável em tempos de liberdade?
Hoje conversei com um cidadão da República Tcheca que vive no Brasil há 10 anos. Chama-se Pavel. Pavel é uma grande figura. O sotaque pendendo para o torto logo é endireitado para o indeciso; meio-termo que aflige todo aquele que não é nativo da língua que intenta aprender. Sem ele desconfiar, foi entrevistado por mim. Para amaciar, comecei assim:
- República Tcheca... A primeira lembrança que tenho de lá é Kafka...
- É, Kafka...
- Mas a cidade de Praga dizem que é linda...
- É, Praga...
- O Brazil éh o mielhor país do muondo, nunca ouço nenhuom estrangeiro falar maou do Brazil, só brazilereios que moram lá fuora que falam maou, o Brazil é maravilhozuo...
Na conversa versamos sobre outras particularidades de seu país, exceto a cidade com nome estranho para nós (Prague, noutras línguas) e o escritor que nunca escreveu uma linha sequer na língua tcheca, que, como a húngara, até o diabo deve respeitar.
Uma conversa dessas serve como uma redenção. A visão de um homem cuja cultura, idioma, senso de nacionalidade, longevidade histórica do continente onde nasceu e demais fatores faz com que, se olhar bem, o Brasil seja melhor do que julgam nossos olhos infantis.
O Brasil não é nem o trágico dos trabalhos escravos do Pará e das chacinas dos morros cariocas e também não é Ipanema, nem Boa Viagem, nem os Jardins. O Brasil é um acontecimento. O Brasil é uma fatia do mundo, que traz na borda as delícias e os pecados dos excessos. Meu novo amigo Pavel me disse, num tom próximo de consternado, que o continente europeu vive uma crise de identidade, falta fé às pessoas, a religião foi substituída pela liberdade, tudo é liberdade...
Veja o caso da nova lei que multa e prende o motorista que beber qualquer quantia de álcool. Eu já bebi e dirigi. Radicalismos são sempre perniciosos, mas alguns são necessários. Eu sei que, se eu beber uma taça de vinho, não porei em risco nem minha vida nem a de terceiros; não obstante, eu abro mão desse meu “direito” de beber essa taça para proibir o sujeito que bebe a safra inteira do vinicultor e depois sai a matar abstêmios pelas ruas. Liberdade sim, mas não liberalidade. Quando 40 mil pessoas morrem por ano em acidentes de trânsito nesse Brasil “maravilhoso”, é hora de cortar certas liberdades.
Advogados já levantaram as vozes acusando de inconstitucional a lei. A Constituição, naturalmente, só atinge os vivos, mas estar vivo é o único pretexto que a morte usa para matar, e enquanto não for inconstitucional morrer, prefiro a vida à Lei. Para costurar os parágrafos que parecem desconexos, termino explicando que, por pior que seja beber e dirigir, e não carecia de lei para se entender isto, continua-se a fazer, porque mesmo sendo mau, é bom. Quanto ao meu amigo conterrâneo de Kafka, ele voltará à terra natal, para passar uns anos, porque o Brasil, por mais maravilhoso que seja, às vezes enfastia o maravilhado...
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