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Voo Rumo ao Silêncio da Floresta

Minha poltrona era a do fundo, a do corredor. O voo transcorria tranquilo, sobrevoávamos um infinito tapete verde, e o céu era azul; num repente, um estrondo abala a calmaria da viagem. Todos gritam, alguns em pânico começam a chorar instantaneamente, como se as lágrimas pudessem estancar o iminente desastre; alguns segundos após o impacto, a aeronave trepida e um solavanco seco faz o sangue congestionar na cabeça; caem as máscaras de oxigênio. Nesse instante, os gritos e o pavor são tão ou mais apavorantes do que o que estava por vir.


Uns ainda esboçam mal sucedida calma, para em seguida proferirem urros que dificilmente se diria saídos duma garganta humana. Tudo chacoalha, caem bagagens, sobem bagagens, quem não tem o cinto afivelado é esmagado pelo choque com o teto e o solo da aeronave; começam os gritos com perverso terror, soam alarmes.


Em desabalada queda, o avião passa a se despedaçar; primeiro as janelas estouram, depois parte da fuselagem rasga-se com estampidos que criam um som inédito e estranho, tudo se desintegrando como se aquilo fosse uma ficção ou o mais tenebroso pesadelo, só que ao vivo.


Os passageiros ao lado de mim, estupefatos diante do inesperado e tétrico desabrochar do avião, tencionavam os músculos da face a tal ponto que a desfiguração dos rostos não os tornava mais humanos; era o horror infiltrado na pele de cada um dos condenados. Os gritos cessaram com as primeiras imagens do horizonte misturadas ao verde-azul, ora céu, ora floresta, ora céu, ora floresta.


À medida que a queda se pronunciava inevitável e toda a cena parecia excessivamente grotesca, superando enormemente os limites da crueldade, muitos dos que pude ver desfaleceram, não pela rarefação do ar àquela altitude ou pelo impacto do objeto que nos atingiu. Eles simplesmente foram violados pela estupidez da probabilidade que os atingiu sem misericórdia.


Um rasgo imenso acima da minha cabeça me deu as primeiras visões límpidas do céu claríssimo; a visão durou um átimo de segundo. Na sequência, partiu-se à minha frente todo o corpo do grande charuto de alumínio em que viajávamos; a comissária flutuou por brevíssimo tempo com o rosto congelado e contorcido; um instantâneo de dor; imediatamente, o silêncio imperou: não se ouvia mais nada a não ser o som extraordinário de uma paisagem que era inequivocamente divina; um oceano florestal abaixo de nós e acima uma cúpula azul que brilhava com uma intensidade magnífica.


Os pedaços da fatídica nave em câmera lenta iam se desfazendo ao feroz ataque do ar; as roupas de todos os passageiros foram rasgadas e arrancadas dos corpos com uma violência brutal, e aquela mistura de filme-catástrofe com realidade nos dizia que não há sensação mais vivaz e absurda do que saber-se morto, estando vivo.


Uma mulher idosa segurou a minha mão com monstruosa força, enquanto voávamos rumo ao fim, que senti estalar o carpo, o metacarpo e a falange, tudo se quebrando em meu antebraço; seus olhos cerrados e os dentes rangendo quebraram-se e, cuspidos, repousaram no seu colo agora inerte.


Malas, laptops, raquetes, pastas executivas, cintos, sapatos, mangueiras, relógios, anéis, perucas, garrafas de Coca-Cola, assentos, tapetes, secador de cabelo, gravatas, frascos de perfume, carteiras, cartões de crédito, sandálias Havaianas, tudo flutuava junto conosco, como se estivéssemos gozando a gravidade zero; mas toda aquela curiosa coletânea de produtos humanos levava grande vantagem sobre nós, pois ignorava o flagelo; iam continuar sendo objetos, e nós só memória.


Ao passo que o impacto se aproximava inexoravelmente, pensei em tudo o que poderia ter feito por minhas filhas, se tratei bem meus pais enquanto viveram, se fui um bom vizinho ou se alguma vez fui rude com o garçom que me trouxe um prato frio; esses pensamentos são velocíssimos, mas comparado à angustiante demora do encontro com o solo (árvores na verdade) parecia uma eternidade funesta.


Fechei os olhos e senti galhos perfurarem a derme e a epiderme; o metal pesa quando lançado a grande velocidade e força contra o solo, mas parece que o peso do nosso corpo carrega uma misteriosa substância que amacia a queda. Fomos entregues à prodigiosa majestade da selva, e a agonia da morte finalmente cessou.


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