Não sei você, mas eu me perturbo com fenômenos imperturbáveis, quais sejam: um Pernalonga que fique de repente bonzinho, celebridades que fazem projeções sobre os rumos do brasil, ou o canal M tevê lançando clipes que persuadam as pessoas à moderação moral e cívica; essas coisas me perturbam muito. Não sei você, mas tenho pavor a ir a um espetáculo teatral e os atores quererem interagir comigo, me tomando por parte do show, eu sem saber contracenar. Fico em pânico.
Fiquei em igual pânico quando vi um documentário, sábado à noite, plena 22h00, plena solidão, no Discovery Civilization, sobre o que leva as pessoas a comprarem carros SUV (lê-se "ésse u vê), esses monstrengos metálicos, consumidores de combustível e de espaços. Um psiquiatra explicou ao seu modo psiquiátrico o que motiva essas pessoas. Muitíssimo curioso. Não sei você, mas eu amo coisas curiosas: 97% das pessoas que compram carros SUV off road 4x4 nunca o usam na lama, piso adequado a esses carros. Comprar carros gigantescos para andar em cidades cada vez mais apertadas equivale, em desfavor da tradição, ao Pica Pau ser honesto e camarada com a Meany Ranheta. Ia chamar de loucura, mas não estou a fim de radicalizar, pelo menos não neste parágrafo.
É loucura, evidentemente. Ah se a vida fosse assim, ah se pudéssemos saltar de um parágrafo a outro mudando de opinião sem nenhum prejuízo à reputação, nem precisaria ter paraíso depois da morte.
O médico ouvido pelo documentário fez o perfil psicológico desses consumidores. Dizia que eram pessoas carentes de atenção, narcisistas, atacados por severa baixa-estima, que sentem a necessidade de, pela arquitetura das SUVs, estarem "por cima" do comum dos motoristas. Os imagino como macacos que sobressaem na floresta por escalarem as árvores; comparação adequada, uma vez que se diz que o trânsito é um ambiente selvagem. Em dado momento, ele comparou os donos de SUVs a bebês que faziam dos carros o seu ventre automotivo, que em regra são parrudos por fora, de expressão e design intimidatórios, "com caras de mau", e por dentro têm o conforto de um avião; como a barriga das mães.
Esses carros fazem em média 4 ou 5 quilômetros por litro de combustível contra 12 ou 14 dos carros comuns; bom para a OPEP, mas eu não sou OPEP e receio que nem você. Ruim para o Aquecimento Global. Mas isto, até eu concordo, é um pouco de exagero, essa excessiva preocupação com um fato que só vai atingir as pessoas que ousarem estar vivas daqui a 10, 20 anos. "Diante da Economia/ Quem pensa em ecologia?/ Se o dólar é verde é mais forte que o verde que havia?" Não sei você, mas, se eu tivesse a grana para montar numa SUV, o faria sem dó nem piedade. Nem dó do meio ambiente, nem por piedade aos donos de postos de gasolina, ou postos de solvente, como é mais apropriado dizer.
Outro dado preocupante é que são as mulheres, logo elas, as responsáveis por 85% dos modelos comprados pela família. E são elas que mais amam as SUVs. É claro que um dado assim não me fará odiar o sexo feminino; o amo pela dor e pelo prazer que significa o amar. As mulheres e os humanos em geral ficam mais poderosos dirigindo um carro assim. Outro dia avistei um humano feminino, aqui perto de casa. Ele parou no farol, me olhou com suprema supremacia e encolhi dentro do meu insignificante Ford Ka, ali atrapalhando sua visão, mas contribuindo para, com sua pequenez, realçar o porte da SUV... O Ka consome pouca gasolina e quase nenhum olhar, exceto os de desprezo.
Um dono(a) de SUV se sente um pouco Madona, não as santas italianas, mas a cantora, "rainha do pop", invejadas, indiferentes à ação do tempo, driblando as rugas e a idade com botox e demais lubrificantes que também se usam para conservar esses carros. SUVs são como cápsulas que subjugam qualquer vestígio que faça o homem se sentir apenas homem. Quando a moda (o patrimônio cultural mais volátil já criado pelo homem) mudar, e ela há de mudar, virá o tempo em que as SUVs ficarão diminutas e, como as fichas de telefonar, obsoletas; chegará a era do triunfo dos tratores ou dos cavalos mecânicos, dos tanques com roda tipo esteira, submarinos termonucleares, caças ultrassônicos, sei lá, imagine um veículo extravagante qualquer e o coloque nas ruas, garanto que eles já andam nas cabeças e andam nas bocas; estão falando alto pelos botecos...
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