Passar o réveillon num hotel de luxo em Salvador ajuda a revelar os aspectos mais daninhos na estruturação social do brazil. Tudo começa com os preços, estratosféricos. Depois vem a infraestrutura aeropórtica, risível. Mas o saboroso está em outras fontes; está na festa, na música, no comportamento de parte da elite econômica. Acompanhe-me:
Já no aeroporto veem-se famílias com crianças e babás a tiracolo. Tudo normal se não fosse o fato de as babás estarem trajadas à moda babá; nada mais pequeno-burguês: todas vestidas de branco, da meia ao botão. Nenhum ente familiar usa peça branca, para não se confundir com a serviçal. É um sintoma sinistro de castas.
Na ceia ao ar livre, num cenário deslumbrante, por misteriosas razões metafísicas, naquele oceano de gente vestida de branco, apenas as babás usam roupas coloridas, para não serem confundidas. Pena Dostoievski estar morto; só ele poderia interpretar com densidade um fenômeno tão extraordinário e bizarro.
Após isto, vem a “música” baiana, que agora é nacional, internacional quiçá. As letras são feitas para imbecilizar ou para destruir o que levamos milênios para aniquilar: a noção de que ser ridículo era inato só em invertebrados. Não que as músicas não tenham sua graça infantil, e as têm, de fato, vez que a natureza de refrãos tão toscos têm o objetivo mesmo de infantilizar adultos, torná-los robóticos e patéticos nas dancinhas.
Parecia que eu via mais do mesmo. Foi assim, mesmerizando plateias muito mais letradas, que Hitler os convenceu de que a insanidade podia naturalmente fazer parte da rotina do mundo alemão, e o resultado foi a carnificina mais terrível já vista.
E quem, naquele ritmo ensaiado, faz a coreografia ora débil, ora obscena das músicas? Advogadas, médicas, arquitetos, engenheiros, dentistas, professores. É a elite diretora do brazil que protagoniza o que antes era consumido só pela ralé. Todos parecem deixar-se hipnotizar pela contagiante sincronia sensual, o requebrar mestiço que faz o gênero brasileiro ser conhecido pelo o que é: um povo titubeante e faceiro.
Naquele oceano de vestimentas branquíssimas, apesar de ser a Bahia, apenas os serventes eram pretos, e os tinham para todos os lados, servindo, varrendo, carregando mesas e cadeiras, suando em bicas, o que me fez crer que eu via ali diante de mim uma versão suavemente triste e atual de seus ancestrais açoitados nas senzalas. O chicote agora é um mísero salário; conversei com um dos empregados do hotel, no auge da festa, e ele disse, exaurido, que estava num turno de 36 horas; perguntei se a remuneração valia o esforço e ele fez que não com a cabeça. Se o salário era de 600,00 reais, o que valeria uma hora extra?
O imenso desperdício de comida foi outra violência admirada com gozo e volúpia por mim. Um banquete de fazer os antigos glutões romanos serem austeros. Presunto Parma, copa, queijos de dezenas de tipos, uma tão magnífica cepa com doces tão diversos e saborosos que me fez crer na existência de Baco; salmões, bacalhau, peru, codornas, eram infindas as delícias. Ao final, tudo devorado com precariedade e desamor, porque logo que uma escultura em forma de comida era desfeita, logo vinha o garçom trocar o alimento, porque os homens também comem com os olhos.
Alfim do fausto, veio a fabulosa beleza dos primeiros raios de sol a inundar o horizonte do oceano Atlântico. Rasgando com impiedade o negrume da noite, o Sol, como queria Machado, contemporâneo de Adão e do último homem que há de vir, iluminou tudo, inclusive as caras excedidas por álcool e cansaço. Ver o dia amanhecer por sobre o mar encobre qualquer vício adquirido nessa época em que todos parecem felizes e solidários, mas, para citar uma canção de Lennon, do álbum “For Sale”, dos Beatles: “por trás dessa máscara/meu rosto parece uma carranca. “I'm a Loser.”
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