O sol não fulgurou aquele dia, na cidade de Barra de Serinhaém. O astro solar que, para alguns poetas, era modelo de funcionário, simplesmente não irradiou naquela manhã. A diminuta população saiu às ruas na hora do costume, a fim de consumar seus afazeres, e à medida que o relógio mecânico avançava, o biológico emperrava na escuridão, que persistia apesar do contínuo movimento nas linhas de montagem.
A duradoura escuridão não afetou a sensibilidade de nenhum dos cidadãos, que prosseguiam prisioneiros dos seus hábitos agora solenemente noturnos. Uns pressentiam no fenômeno uma excelente oferta de ascensão social: não aumentando a oferta de lanternas e lamparinas no mercado, mas sim criando aparelhos capazes de estimular a fotossíntese nas plantas --- até ali, as únicas afetadas pela ausência da estrela anã; outros apenas ousavam saborear a ocorrência com a impiedosa indiferença, adereço muito particular em toda sorte de fenômenos.
Era comum que se flagrassem religiosos pregando nas ruas a vinda não de um novo sistema de coisas, mas a prometida chegada da prosperidade terrena, e não foram poucos os que encontraram naquele conforto uma maneira de tolerar a nova realidade, esquecendo os infortúnios da normalidade do passado, que dividia o turno de vinte e quatro horas em noite e dia.
Professores não pronunciavam nas aulas as causas ou sequer aludiam ao fato, encontrando respaldo na neutralidade dos alunos, que pareciam se entorpecer ao acordar em plena noite quando certificados estavam de que dormiram dentro dela, e a torpeza deu origem a uma nova classe de homens, aqueles suspensos de claridade. O grande consumo de energia fez a cidade crescer a taxas nunca antes vistas, e mesmo os puristas, vertente rasa dos conservadores políticos, abençoaram a nova fase e preparavam discursos inflamados que previam sanções ao Deus-Criador caso a estadia da noite plena fosse abreviada. O sol fora declarado forasteiro; baniram-no por meio de um decreto da convivência humana, entregando-lhe então todo o peso por séculos de flagelos, por coautoria ao lado das leis morosas, por milênios de misérias e má gestão da fatia diária que lhe cabia.
As referências ao ex-patrono do dia foram abolidas e apagadas das bibliotecas; livros o mencionavam de forma jocosa, como a um deus que cai em desgraça por não aquiescer às mesquinharias de seus devotos; a organização social se dava em harmonia com o tempero da penumbra que a tudo encobre e não contamina. Os habitantes, paulatinamente pálidos, começaram a brilhar em meio ao breu, visibilidade que os impediam de negociar às escuras; a decadência luminosa obrigava a muitos besuntarem seus corpos com proteína escura, lama importada dum manguezal, e ao cabo de cem meses estavam todos escuros como neve invertida que brota do solo e se precipita por debaixo do céu. A escuridão, tornada intensa, consumia todos os átomos; nenhuma fagulha se dava a crepitar sem instantaneamente ser extinta. Muitos cidadãos passaram a clamar fervorosamente por uma chama, pois as pupilas perderam a capacidade de enxergar e, num lapso de tempo improvável, tudo se tornou claro e radiante; mas, na extensa e infinita cúpula azul, não se via nenhum sinal de sol ou outro pernicioso magma que, ao ambiente, subitamente iluminara.
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