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Ode à Liberdade


Um homem foi acorrentado em “cadeias indestrutíveis” e posto em praça pública para ser linchado e lapidado pública e verbalmente por todos os cidadãos.


As lágrimas do homem saíam dos seus joelhos, e o fenômeno tão notável quanto seu crime ignominioso não chamava a atenção dos circundantes, que se enfureciam com a indiferença do seu semblante, já que todos o olhavam a partir do torso superior. O homem permaneceu preso às cadeias sem lastimar um momento, às vezes grunhia alguma coisa e todos acorriam para expiar o lamento, mas eram apenas insetos que se instalavam nas suas vias aéreas ou se alojavam no seu ouvido, e o grunhido era a ferramenta para fustigá-los, sem machucá-los. Faziam-se vigílias permanentes para ver no homem um lamento, um esgar que fosse, mas ele não sorria, não chorava.


As apostas se tornaram constantes e disputadas; algum dia aquele prisioneiro teria um reclamo, uma afronta à sua sorte. A convivência com o espetáculo mudou a rotina do lugar. Senhoras bondosas levavam legumes ao encarcerado, que murchavam ou reviviam quando tocavam o solo fértil. Água ele recusava; fitava o astro diurno com altivez, dilatando as pupilas, como a querer fixá-lo dentro de si, ficando todavia cabisbaixo para o astro noturno, e a peculiaridade disto intrigava a assistência, sempre ávida de explicação.


O volume de pessoas crescia a cada dia, as apostas se transformaram em ações e eram cotadas e negociadas na Bolsa de Valores, com ganhos de 8 para 1 a quem apostasse num repentino lamento do homem, que resistia olimpicamente às ferroadas de abelhas, esguichos de cães amestrados, insultos de pássaros, a chuva ácida que caía; e nada disso contribuía para separá-lo da vida, até ali tão cara para ele.


Imediatamente ao vigésimo quarto dia, todas as pessoas choravam ao ver o deploro em que estava o homem; os carros batiam, o trânsito caoticava, as famílias iam se diluindo, até que todos deixaram o homem em paz e o pouparam de suas atenções. Todos os consultórios psicanalíticos ficaram lotados; todos perturbados diante do flagelo daquele homem, pareciam padecer mais do que ele próprio e procuravam ajuda na homeopatia, no suicídio e nas metas freudianas que pregam o suplício da alma. Foi unânime entre os terapeutas que a situação era de epidemia psíquica, causada pela inércia do pretenso sofrimento alheio que todos sentiam, mas que o próprio vitimado não demonstrava, e, enfim, veio a depressão geral.


Colocado em liberdade dos olhares, o homem pôde descansar do seu destino; aguardou ansioso pela chegada do raio ofuscante do sol e nele se banhou, como se aquele fosse seu último e fatal desejo. Nem bem chegou a noite, os secretários legais desataram as cadeias que prendiam o homem ao obelisco central, rumaram com ele pela penumbra e o depositaram numa urna blindada, convenientemente selada num invólucro de chumbo e jogada no alto mar, que abriu sua eterna vaga e o aceitou sem oscilar a gangorra; sem emitir sequer um sinal de reprovação, o abrigou na profunda fossa da escuridão.





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