Escrevo dentro de um ônibus. A cidade perpassa nervosa diante de mim, as luzes inoculam vozes nas bocas silenciosas dos passageiros. O motorista está dopado de tédio, cambia as marchas com sonolência; deve haver um turbilhão de afazeres, uma família escassa, carnês de prestações contraídas pela mídia, o almoço decerto frio que contaminou seu estômago com solidão. Ele necessita de vida, seus olhos denunciam a farsa, é um milagre que não tenha batido o ônibus --- talvez o tenha feito às avessas, no microuniverso da sua cabeça. Observa a mim que o observa, desliza a mão na barba de três dias, o incômodo lhe aflige e inquieta; aparece uma passageira conhecida, a saia rodada e rota, avisa-lhe a presença antes com o perfume do que com o corpo, porque ele a percebeu antes de ela entrar.
O motorista não contesta o bom dia recebido pela moça, ignora banalidades, calcula o cumprimento da saia dela, como quem dispersa os sentidos para várias frentes e lugar nenhum. O homem ainda se incomoda com minha presença inusual e atenta, como a fiscalizar suas ações, seus sentimentos; os sinais trocam de cor, e a sua permanece a mesma, o perturbo da moça não faz parelha com o meu, ele raciocina meu intento, me crê um bandido, um policial, um débil mental, uma junção de tudo isso em separado, que deve fazer de mim um terceiro ser, entre humano e inventado.
Sacode o cinto de segurança, para o coletivo na borda da copa da árvore, que roça suas folhas de modo quase erótico, e espero ansioso pela saída do último passageiro que reluta em sair. Há vários de mim observando suas ações, percepção que o encabula e lisonjeia, como uma faca que fere e sara no mesmo corte; apanha sua bolsa opaca e, sendo opaca de uso e não de cor, dispensa alguns objetos, serpenteia um pente por entre uns fios de cabelo quase espirituais porque invisíveis, como a saborear a súbita fama. Despede-se do cobrador, desce até a guarita (quartel general dos motoristas), cambaleia ao abrir a porta e balança o corpo com leveza, como um homem que acabara de chegar de uma viagem marítima, o corpo entregue à influência do balanço do mar, um efeito criado apenas porque a porta não abria.
Olhou à sua retaguarda e, quando percebeu-se observado, multiplicou seu balé com mais simetria; estava ele num palco, entregue a uma encenação sem ensaio, tudo elaborado a um momento impróprio, alheio à sua vontade, ao seu anseio, e não quis fugir. Ele permaneceu lá por longo tempo, no embate entre ele e nós. Venceu a vaidade, ambos observados. Saíram todos vedados: um de orgulho, outros de lassidão.
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