Seu rosto conservava um breve sulco, fruto de um sorriso recente, já expirado. Olhei-a devagar, calculando seu semblante, mentalizando as nuances. O bebê no colo era irriquieto, sugava a chupeta suspeitando que ela fosse um seio impostor e sintético porque abreviava cada sugada com uma piscadela nervosa, como a querer enganar-se por golpe de vista.
Inventariado, o rosto dela se desfez como um suspiro (na boca), ficando na mente apenas a sensação de uma face, meio oblíqua, qualquer coisa entre turva e neblínia; segui o curso da avenida. Retornei.
O negrume da sua pele contrastava com a alvura do lençol que envolvia o bebê, este menos negro que a noite. Ao lado dela, uma caixa recheada de balas, meio desesperador para afugentar a miséria, essa força básica e destrutiva da natureza.
De onde poderia vir a fonte causadora daquele sorriso? De uma venda realizada? De uma lufada de ar que fez bulir e espertar o seu espírito? Inda mais porque captei apenas o fantasma do sorriso, ou o esqueleto dele em forma de vinco facial. Corre até a senhora e diga-lhe que embora cubra com tinta seu rosto ele um dia ficará descarnado, pensei eu lembrando do Yorick de Hamlet. Fiquei a pensar na ousadia do sorriso. Quase com indignação, queria furtar dela esse direito. Eu não sorrio, por que ela sorri?
Por que o sorriso? Vingança contra a agonia? Resignação a serviço da paz interior? Impotente, tentei aliviar parte da culpa que talvez não possua, contribuindo para a propagação da sua situação, um paliativo do acaso. Não houve sorriso. Nem obrigação, como ato de agradecer, apenas um aceno ocular, de leve, matreiro, como a intuir minha intenção com sutileza e aferição; foi um olhar preciso, como a arte de navegar.
Sem paz, prossegui minha rota, crendo ter sido ludibriado pela percepção, o orgulho quiçá ferido, um pouco melindrado comigo, percebendo meu próprio corpo como um lugar hostil, uma fissão nuclear eclodia a cada instante em alguma parte de mim. Deslizando por sobre rodas, inda e sempre me ponho a pensar, cogitando e esgotando possibilidades, mas sempre a indagar: o que a teria feito sorrir?
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