“Ninguém sabe o que sou quando rumino”
Não. Ninguém sabe. Mas Machado sabia. Com essa frase ele queria nos enganar. Quem era esse misterioso caractere humano? Limito-me a dizer que ele é uma força da natureza. Quase um milagre. “(....) dos nascidos de mulher, não se levantou ninguém maior do que João Batista”, disse Jesus. Dos nascidos de língua latina, não se levantou ninguém maior do que Machado de Assis. E isso apesar de Rosa, Borges, Cervantes; de Flaubert, Balzac, Proust; apesar de Dante. Apesar de Virgílio. E só não vou além no meu delírio e digo que ele foi o maior de todos porque se deve respeitar gente como Kafka, Dostoievski, Milton, Dickens, Shakespeare, Chaucer, Joyce, Faulkner, Goethe, Mann. Mas nosso Machado, no mínimo, ombreia com qualquer um desses que não escreveram em língua latina.
Ele reunia qualidades raríssimas num grande artista: era um intelectual, um sábio, um gênio. É uma combinação rara. Shakespeare era o modelo primaz do gênio criador, mas não um intelectual na acepção pura da palavra. Como escritor, Machado superou Shakespeare. Diferente do inglês, ele foi capaz de se destacar em todas as expressões literárias: foi um razoável dramaturgo, um bom poeta, competente jornalista, excelente tradutor, ótimo cronista, magnífico contista e extraordinário romancista. Penso que há um empate técnico entre o romancista e o contista Machado.
Outra preciosidade que me faz ver Machado maior do que Shakespeare (sem jamais desmerecer o inglês e tendo ciência da desimportancia da comparação, mesmo porque, como disse uma leitora desta coluna "não existe um régua para medir gênios"), é observar que o brasileiro dissecava não apenas a alma humana nas suas personagens, mas tinha imensa capacidade para dissecar os sistemas sociais e os mecanismos que levam o homem a ser refém de suas próprias maquinações, ele fundia o homem ao seu habitat como se ambos fossem um só organismo; Machado antecipou Freud em alguns aspectos psicanalíticos. Em ir ao âmago da gênese humana, ele talvez fique atrás apenas de Dostoievski, que pecava por ser prolixo demais, por culpa do frio siberiano.
É correto afirmar que se ele não escrevesse numa língua marginal como a portuguesa, teria sucesso mundial retumbante. Todavia, não escrever numa língua político-econômico como a inglesa ou filosófica como a alemã, não impediu que intelectuais de peso como Susan Sontag se rendesse ao talento dele. O americano Harold Bloom, talvez o mais influente crítico literário desde Montaigne, dispõe Machado entre os 100 maiores escritores da História, conferindo-lhe o título de “maior artista negro de todos os tempos”.
Quero fugir do tom marcadamente “academicista” que norteiam os críticos que escrevem sobre Machado. Alguns querem ser mais machadianos que o próprio Machado. Elaboram teorias complexas, empulham. Buscam decifrações extravagantes. Endeusam-no. Tenho umas diferenças pessoais com Machado; homem do seu tempo, era monarquista, positivista e ateu, não que haja mal em ser ateu, mas era ateu; foi até censor, papel que não cabia a um homem da sua estatura. Mas: “todos os contrastes estão no homem” disse ele, se referindo a si e a todos. Poderia ter posto seu grande prestígio a serviço da Abolição da Escravatura. Talvez não o tenha feito por ser mais um homem de gabinete e menos de palanque. Não corria nas suas veias o sangue “emocionalista” dos abolicionistas e sim o sangue da reflexão: a urgência pedia mais emoção e menos reflexão.
Não pertence a outro biografia mais espetacular no Brasil. Nem Pelé. Nem Dumont. Nem Rui Barbosa. Nem ninguém. Que misterioso poder, que misteriosa matemática fez com que um sujeito nascido no morro, neto de escravos alforriados, a mãe lavadeira, o pai pintor de paredes, mulato e contemporâneo de um dos regimes mais cruéis que o homem criou; consta que tímido, meio gago, epilético num tempo em que ser epilético era ser visto com preconceito maior do que ser negro pois se achava que a doença era “possessão demoníaca”, como um homem nascido sob tão dura pena, que nunca se afastou por mais de 120 km de sua cidade natal poderia se infiltrar na aristocrática Corte carioca do século XIX e se transformar num dos maiores escritores do mundo? Machado é a imagem vivaz da negação do destino. Contraria o pensamento de Kafka que diz (com acerto) que numa contenda entre você e o mundo, o mundo irá vencer, sempre, sempre e sempre.
Ele nasceu Joaquim Maria. Ao escolher seu nome literário - o seu pai era Assis, a mãe era Machado -, é como se ele abrisse mão da sua identidade para homenagear seus genitores: a Sra. Machado era do Sr. Assis. Machado de Assis. Bela homenagem.
Carolina (Capitolina?), foi seu porto seguro, a base para que o escritor desenvolvesse sua arte, quando Machado se encontrava enfermo, foi ela quem escreveu as primeiras páginas das Memórias Póstumas ditadas por ele; dedicou a ela alguns de seus melhores versos, em vida: “Espírito e coração como os teus são prendas raras (...) como te não amaria eu?” em morte: “Querida, ao pé do leito derradeiro/ em que descansas dessa longa vida/ aqui venho e virei/ pobre querida/ trazer-te o coração de companheiro”. O sonho de todo escritor, é ter consigo uma Carolina. Às vezes, o artista ama tanto sua arte e sua amada que se divide entre elas: uma Beatriz para dois.
De espírito contemptor, autodidata, poliglota, presumo que Machado discordava de quem, concordando com ele, acreditava que o mundo não era um lugar hostil. Acusado de ser pessimista por seus detratores, ele enxergava bem além do que o alcance de cada óculo do seu pincenê; usava sua fina ironia para embotar aqueles que não eram páreo para o seu gênio.
Às portas do centenário de sua morte, uma das mais reluzentes estrelas do cenário artístico nacional vai voltar à cena em forma de séries, debates, livros, e não sei quê lá mais. Será um privilégio rever estampado o nome no grande Machado em letras graúdas, espero que seu nome ande nas cabeças e nas bocas e eu, que tive a ousadia de dar voz a ele num certo escrito, daria mais essa, caso ele nos visitasse algum dia: “Muito prazer, eu sou Machado de Assis”.
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