Foi com alguma surpresa que os habitantes da cidade litorânea de Barra de Serinhaém receberam a notícia da rebelião das empregadas domésticas. Não houve sequer um planejamento da ação: todas decidiram se rebelar contra os patrões da forma menos prejudicial à sua segurança com o silêncio, aqueles homens opressores, feitos de esperma e não de gratidão.
Os milenares maus tratos não foram exatamente os motivos alegados para a greve; antes uma onda de enfado coletivo atacou as empregadas daquele lugar. Os patrões, desprevenidos, lançaram campanhas para a substituição das desertoras, mas o sucesso do intento foi nenhum. Em dois meses, as pias e os tanques eram os lugares mais caóticos das casas abastadas; tornou-se comum que altos executivos aparecessem em reuniões com os vincos das roupas enviesados, quando não manchados por mistura de cores. As donas de casa, que só guardam tal título de “donas” por tradição, já que não lavam, não cuidam dos bebês e nem dos maridos, promoveram assembleias para delinear um plano emergencial contra a insurgência das lavadeiras; lá deliberaram sobre aumentos salariais, plano médico extensivo aos vizinhos das empregadas e até transigiram sobre eventuais joias furtadas, ainda que as de estima.
A publicação da ata nos principais veículos de comunicação não garantiu o fim da revolta; todas as empregadas permaneciam impávidas, ao abrigo de suas vontades. Algumas patroas em desespero sugeriram uma luta armada contra as serventes de campo; era uma questão de vida e morte, caso elas mesmas tivessem de lidar com fogões, máquinas de lavar, entender e aceitar a pronúncia da palavra rodo, calcular o uso da vassoura e o aroma do Pinho Sol.
O Galpão onde estavam alojadas as empregadas passou a ser alvo de protestos; primeiro com pichações, depois com o advento de granadas, o que custou a vida de uma delas, que ousou dizer não à sua família protetora. A saída encontrada pelos maiorais de Barra de Serinhaém foi sitiar o Galpão e, em conluio com as estatais fornecedoras de energia e água (cujos diretores também eram vítimas da revolta), promover o corte no fornecimento de água e energia do Galpão, que já era escuro e seco por natureza. Com tochas e capuzes, os principais patrões da cidade ameaçaram atear fogo na fortaleza, mas foram impedidos pela força policial, que sugeriu, em vez de fogo, uma mudança na Constituição que previsse a insurgência de subalternos com sanções severas, como a extinção de seus antecedentes. A solução foi considerada, além de moderada, um pouco morosa, já que seriam necessários três dias para aprovação e vigência e aplicação da nova lei.
O cerco se estendeu por nove dias. Com a comida racionada, algumas empregadas recorreram ao canibalismo, iniciando o ato de caridade antropofágica com uma patroa ali mantida como refém. O pavor tomou conta da cidade. Uma a uma, as patroas foram dadas às insurgentes, e logo eram devoradas pelas ex-colaboradoras. As cidades circunvizinhas entendiam que aquilo se tratava de hipnose coletiva, a estranha ação dos patrões em dar de bom grado e sem resistência suas esposas em sacrifício. Consumida a última mártir, as empregadas deixaram em fila indiana o Galpão e rumaram para as casas onde trabalhavam; foram recebidas com cerimoniosa pompa pelos filhos e herdeiros das casas abastadas. Em transe, todas ignoraram a recepção, arrumaram suas malas e voltaram para prosseguir a revolta no interior do misterioso Galpão.
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