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O Flanelinha Invisível


- A moeda! A moeda!


- Hoje não tenho.


- Amanhã você paga duas?


- Pago duas.


- Tá. Amanhã duas.


- Falou então, até mais.


- Falou, falou.


Guardo o carro à proximidade da escola onde estudo, à mercê da sorte. Todas as noites deposito nas mãos do senhor o colete que flameja ao choque dos faróis, as moedas que encontro no console do carro --- de todos os centavos existentes. A pele dele é extremamente negra. Sulcos marcam profundamente a geografia precária do seu rosto. O lábio é assaz espesso. Um original ascendente de africanos da gema. Outro dia, ele me disse que já fazia ponto ali “há coisa de 12 anos”.


Em três meses me desvencilho da escola. Em três meses ele prosseguirá ali nas ruas; em três anos, em três décadas, lá estará ele se a saúde e o faturamento assim o permitir. Sua compleição e compostura física não indicam, num primeiro momento, nenhum desastre que o tenha feito seguir semelhante carreira. É verdade também que as marcas mais profundas são aquelas que lesionam a alma, cicatrizes invisíveis.


Não sei que mistérios levaram-me a preocupar com um guardador de carros que talvez desfrute de mais felicidade do que eu ou você, que agora intercala essa leitura com um pensamento intruso que uma palavra solta no texto por ventura lhe tenha acendido a lembrança de um fato importante.


Ainda ignoro o nome dele.


A ação e o nosso contato é sempre muito veloz, o medo do breu e dos ladrões me faz entrar no carro como quem tenta frustrar a espreita de uma fera que cobiça o espreitado. Amanhã lhe saco o nome. Prognostico que deve ser João Amâncio. Pereira. José Conceição. Sr. Macedo.


Vindo embora, comparei o futuro dele com o meu. Ele, desvencilhado de necessidades tecnológicas, esquecido que há celulares de último tipo, ignorando a existência de Freud e do Prozac, tende a viver sem as agonias que me nos aflige, e, de pronto, diagnostico-lhe uma vida sem emendas artificiais. Talvez a pinga seja-lhe uma boa emenda; mas faça-se justiça ao homem: das centenas de vezes em que abri o vidro para lhe dar os trocados, nunca recebi de seu hálito uma onda de odor alcoólico. O que eu não me perdoo não é pela quantia de pouca monta que lhe entrego noite a noite; o que me diminui muitamente, como humano que suponho ser, é não saber, cinco anos depois, qual é o nome dele. Talvez seja Sr. Invisível.




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