Hoje não irei usar os artifícios do costume e dar aquela tostada no seu prazer de ler, iniciando o texto com um chiste, vá lá, uma piadinha pálida, comentar da temperatura, o novo penteado de uma cantora de axé, nada; vou direto para a tragédia, sem escala no fútil, sem anestesia verbal. Sinta a agulha do cômico penetrar sua derme, mas muito cuidado, não vale chorar.
Um cidadão morador de São Paulo, capital, conseguiu operar um desses feitos que nos faz reativar nossa reflexão sobre a existência; ele simplesmente atropelou um transeunte com seu carro e, cataplawer!, só ficou sabendo do evento quando estacionou o veículo na garagem do prédio e, cataplawer!!, descobriu o corpo do transeunte já ausente de vida no banco traseiro.
Concorda comigo que a capilaridade deste evento nos eleva a um patamar de insidioso prazer, quase nos aproximando do divino? É o que acho. Mas achar todo mundo acha; quero ver alguém achar, divulgar o achado e dele fazer um benemérito, uma coisa assim. Se é verdade que o nível de estresse que tomou de assalto (!!) as grandes cidades, a ponto de não vermos que carregamos no banco traseiro um passageiro desligado da vida por força de um impacto violento, é melhor regredirmos às cabanas, ocas, iglus, às cavernas, com todo respeito aos amantes de presídios e shopping centers.
Enquanto escrevo, o cérebro teima em confeccionar anedotas; anedotas têm o efeito de manteigas metafóricas para fazer escorregar goela abaixo o pão seco de um absurdo contemporâneo como esses.
O motorista, provavelmente com um escritório na cabeça, como se diz, não podia mesmo dar com um cadáver à sua sombra; previdente, ele alegou ao delegado que, ao ouvir o estrondo da batida, não pôde diagnosticar a extensão do acidente e, com medo de sofrer um assalto, correu ao abrigo da casa.
Todo mundo, ou quase o todo dele, precisa viver, correr, amar, ir ao cinema ou ao banco, pagar as despesas que, como a sola do pé, não acabam nunca, passear, encontrar um par para chorar ou sorrir, mas exorto-vos, como deve dizer um pregador de estirpe, exorto-vos a ir de leve, parar às vezes, ir devagarzinho nas tarefas diárias igual faz massagista de porco-espinho, porque, qualquer dia desses, se a gente insistir em pensar que vê mas no fundo não vê, é provável que acabemos por cometer um suicídio medonho, pregando a língua num parafuso e pulando do sexto andar, dia seguinte a legenda nos jornais:
PULOU DA JANELA, ESQUECEU A LÍNGUA NO ANDAR, CONTINUA A MORRER, INVESTIGAÇÃO DIZ QUE FOI DESCUIDO...
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