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MACHADO DE ASSIS: UM SÉCULO DE PRESENÇA

Texto integral da conferência que proferi sobre Machado de Assis em seu centenário, abril de 2008.


Boa tarde.


QUEM É MACHADO?


Machado de Assis é uma das mais significativas e fascinantes figuras que o Brasil produziu nos seus 508 anos de história.


Para alguns, ele é um milagre. Até para os que não creem em Deus, Machado é um milagre. Para a escritora Nélida Pinon, se Machado de Assis foi possível, então o Brasil é possível. Para mim, ele é um enigma.


Gênio, mágico, fenômeno. Os adjetivos que marcaram a vida de Machado se esgotaram muito antes de sua morte.


Decifrá-lo por meio de suas personagens? Não aconselho. Por quê? Bem, porque como dizia o próprio autor, “todas as contradições estão no homem”. Vejamos na questão de um tema caro ao autor, a inveja. No romance de 1872, Ressurreição, dizia que “a inveja é um mau sentimento”. Já o Quincas Borba, ao explicar a Brás Cubas o seu “novo sistema” filosófico, louva e contempla a inveja.


Não, meus caros; o que ele fez não foi pouco. Vamos fazer uma regressão e chegar ao ano de 1839, mais precisamente no dia 21 de junho. Me acompanhem.


Quando Machado nasce faz apenas 31 anos que a família real portuguesa, “convidada” a deixar a Europa pelo furacão Bonaparte, desembarca no Brasil. Entendam que aquele era um Brasil provinciano e o Rio de Janeiro um vilarejo, que não tinha sequer sistema sanitário. Não existia sequer independência judiciária: a lei imperial proibia a publicação de livros! A imprensa inexistia. Esse parece não ser um cenário propício para o nascimento de um escritor. Imagine o jovem Mozart nascendo numa Viena em que os pianos são proibidos?


No entanto, esses não foram os maiores obstáculos que o pequeno Machado iria enfrentar; não. Hoje, na aurora do século XXI, observamos ainda a chaga do preconceito de pele, ou o RACISMO CORDIAL; o que dizer do século 19, tempo em que o regime então vigente fazia da escravidão a maior força econômica do país? Dos cerca 300 mil habitantes do Rio de Janeiro, 150 mil eram cativos. E Machado, neto de escravos alforriados, filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira de roupas, nasce nessa paisagem social delicada. Uma sociedade onde o indivíduo tem seu destino já determinado pela origem e pela raça.


Mas não para por aí. Além do peso da origem, Machado carregará por toda a vida limitações físicas que seriam um peso para qualquer pessoa, e agravada na figura de um escritor.


Mulato, epilético, meio gago até. Quando sentiu os primeiros sintomas da epilepsia, a chamava de “umas coisas estranhas”. Naquele tempo, a epilepsia não era bem compreendida e havia um preconceito enorme, porque alguns diziam que os ataques eram “possessões demoníacas”. Com 6 anos, sua única irmã morre de sarampo; aos dez anos, perde a mãe, Maria Leopoldina, para a tuberculose.


Diante de todas essas dificuldades, ele conseguiu sobressair e se tornar o maior expoente da literatura brasileira e latino-americana daquele e de todos os tempos.


Aos 15 anos, já falava francês.


Pouco a pouco, Machado deixa a vida do morro e passa a frequentar o centro da cidade; é de se notar que já neste tempo era um rapaz de grandes ambições.


Seu primeiro emprego foi de tipógrafo na livraria de Paula Brito; logo passou a publicar poemas; depois conseguiu emprego na Imprensa Nacional.


É importante destacar que a vida de Machado de Assis nunca se baseou em lances de repentinos sucessos ou golpes de sorte. Tudo foi gradativo na sua carreira.


Machado Leitor


Machado era um leitor voraz. Entre seus livros prediletos estavam a Bíblia e, em especial, o livro do Eclesiastes. Ao longo do tempo, passou a ler os grandes clássicos da literatura. Lia Homero, Shakespeare, Cervantes, Camões, a filosofia de Schopenhauer e Diderot, o teatro francês de Moliére, a literatura inglesa de Daniel Defoe e Charles Dickens, de quem traduziu soberbamente o comovente OLIVER TWIST, e também era fã de Edgar Alan Poe, de quem também traduziu o poema O CORVO.


Interessante é que toda essa bagagem de leitura dá a Machado a base necessária para compor sua longa obra, a viajar com a imaginação para lugares em que nunca esteve, porque o máximo que ele se afastou de sua cidade natal foi 120 quilômetros, até a cidade de Friburgo, para um tratamento médico. A isto ele diz:


“Sou um peco fruto da capital, onde nasci, vivo e creio que hei de morrer, não indo ao interior senão por acaso e de relâmpago”.


Em outra ocasião, ele ironiza essa situação ao dizer, numa crônica de 1898: “Eu sou da natureza das plantas, morro onde nasci”.


É muito possível que suas constantes crises epiléticas o impedissem de viajar para longe, ou mesmo para a Europa ou, mais especificamente, para a França, afinal, aquele Brasil da segunda metade do século 19 era uma terra de francófilos. O fato é que ele tinha pavor de sofrer as crises em público.


Todavia, não sendo possível ao gênio viajar fisicamente, o fez por meio dos livros e da imaginação, veículos que não encontram fronteiras, nem barreiras.


MACHADO X SHAKESPEARE


Costumo dizer, para espanto de algumas pessoas, que Machado foi um escritor maior do que Shakespeare. Apesar de não existir uma régua que possa medir gênios, digo isso com uma certa comoção, uma vez que sou um entusiasta da obra do grande Shakespeare.


Bem, primeiro que Shakespeare teve a vantagem de escrever na língua que seria o idioma político, econômico e cultural do mundo, e Machado, numa das mais periféricas, e pior, num país que simplesmente nunca teve tradição literária.


Outro ponto que chamo a atenção é este: quais são os temas principais na obra do inglês? Bom, estão lá as grandes intrigas palacianas, como em Macbeth, a guerra entre dinastias, como em Ricardo 3º, a usurpação de tronos, como em Hamlet, ou mesmo o sobrenatural, na figura de bruxas, demônios e duendes, como em Sonhos de Uma Noite de Verão; ou seja, temas grandiosos de imenso impacto psicológico e visual.


Já Machado nunca se valeu da grandiosidade temática para compor nenhum dos seus 9 romances. Sobre isso ele diz:


“Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”.


Os temas que Machado se ocupava eram “mínimos”, quais sejam, o adultério e a loucura. Observe que seus 3 grandes romances (Memórias Póstumas, Quincas Borba e Dom Casmurro) oscilam sempre sobre a mesma temática: a loucura e o adultério. Não é de admirar que até mesmo gente boa como Monteiro Lobato tenha desprezado a obra de Machado, se referindo a ele como “o escritor daquelas traminhas de adultério”.


O que Lobato não percebeu é que ali residia a genialidade de Machado, que certa vez escreveu: “Dê-me um grão de areia e eu construo um mundo”.


Não sei se Lobato ou mesmo Shakespeare conseguiriam compor obras de tamanho vulto com temas tão comezinhos, tão mínimos.


Outro aspecto que distingue o gênio de Assis do gênio da Inglaterra é que o brasileiro foi capaz de se expressar nas mais diversas concepções literárias, e Shakespeare, não. Vejam:


Machado foi um razoável dramaturgo, competente poeta, bom tradutor, jornalista de fôlego, grande cronista, extraordinário contista e magnífico romancista, podendo também ser atribuído a ele qualidades de novelista, uma vez que o texto de “O Alienista” é considerado por alguns como uma novela. Chamo atenção para o fato de que todas essas expressões literárias já existiam à época de Shakespeare, exceção feita apenas ao “ensaio”, que foi desenvolvido pelo francês Michel de Montaigne no século 16, e em muitas das 700 crônicas que Machado escreveu, podemos ver aspectos de ensaísta no escritor.


Machado e a Linguagem


Machado fez uso da linguagem escrita para desvirtuar a lógica que o destinaria à mediocridade comum; sobre isso, adverte o pai de “Brás Cubas”, preocupado com o futuro do filho relapso:


“Teme a obscuridade, Brás. Foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e o mais importante de todos é valer pela opinião de outros homens”.


A linguagem salva. Reabilita.


Quando o pensador alemão de nome complicado e ideias também complicadas Ludwig Wittgenstein, pela primeira vez na história, coloca a linguagem no centro da filosofia moderna, sistematizando-a junto com a lógica, torna célebre a famosa máxima de que “os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”.


Ora, ele não fez mais do que descortinar o óbvio, uma vez que o processo do nosso raciocínio é feito com palavras e, pelo menos em tese, quanto mais vasto for o alcance da nossa linguagem, mais fácil será concatenar as ideias.


Em recente estudo numa fábrica, no subúrbio carioca, antropólogos descobriram que os operários falavam, em média, 200 palavras diferentes por dia. Parece muito, mas é pouco. Uma pessoa de cultura média fala cerca de 6 mil palavras diferentes no decorrer de uma vida de 70 anos.


Machado conseguiu, num livro de apenas 176 páginas, escrever nada menos que 5724 palavras diferentes, ou seja, num único livro ele condensou uma vida inteira! O livro é este aqui, um pouco maltrapilho, sem capa, desfolhado, porque, fora as consultas periódicas, já o li por 14 vezes.


A Profecia Machadiana


Não é incomum que alguns escritores dotados de grande sensibilidade artística tenham feito prognósticos sobre fatos futuros, e é assombrosa a lista de casos em que tenham acertado o alvo na imensa janela do tempo.


O poeta alemão Heinrich Heine escreveu em 1821:


“Aqueles que queimam livros, acabam cedo ou tarde por queimar homens.”


Efetivamente, na primavera de maio de 1933, 112 anos após a previsão do poeta, os nazistas queimaram em praça pública vários livros em várias cidades de escritores alemães inconvenientes ao regime totalitário.


Efetivamente, a partir de 1942 chegam as primeiras notícias do holocausto de judeus, homossexuais, ciganos e Testemunhas de Jeová pulverizados em câmaras de combustão.


No livro O SENTIMENTO DO MUNDO, de 1938, Carlos Drummond de Andrade escreve no belo poema ELEGIA:


Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota


e adiar para outro século a felicidade coletiva.


Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição


porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


O poema parece uma clara alusão aos ataques sofridos em 11 de Setembro pelo “Coração orgulhoso” dos EUA da América.


Já Monteiro Lobato, num livro publicado em 1926, sob o título O PRESIDENTE NEGRO, relata que os EUA têm uma eleição disputada por um negro e uma mulher no distante ano de 2228; parece bastante atual, com a verdadeira eleição que ora ocorre naquele país.


E Machado? Entra nesse time de “profetas?”. Vejamos.


Numa crônica de 1896, ele fala da necessidade de uma ponte política ligando a capital fluminense à cidade de Niterói, “não impedindo que seja feita também uma ponte de ferro”.


Bem, a ponte política parece que ainda não foi construída, mas a de “ferro” prevista por Machado foi entregue aos cariocas em 4 de março de 1974. Portanto, 78 anos após a dica do escritor.


Contudo, a previsão que eu mais gosto nele é a da irresponsabilidade dos adultos que geram crianças para sofrerem no mundo. No livro das Memórias Póstumas de Brás Cubas, há uma certa Dona Plácida, filha de um sacristão que a abandona depois que ela nasce, e ela passa a viver pelas ruas de costuras e de cozinhar; certa vez, Brás, apiedado dos sofrimentos de D. Plácida, lhe pergunta como foi a sua vida. E a partir daí, Machado de Assis faz um relato mental da biografia da pobre dona Plácida; é o capítulo 75 do livro, o relato é este:


“Assim, pois um dia…”


O grande filósofo alemão Friedrich Nietzsche certa vez disse que o único psicólogo que tinha algo a lhe ensinar era Dostoievski; ele falou isso porque não conhecia Machado de Assis.


Em alguns aspectos, Machado antecipou conceitos que Freud iria tornar populares anos mais tarde.


Em 1895, Freud lança o seu estudo sobre a histeria, que não foi muito bem aceito; Machado já antecipava o tema com O ALIENISTA, que é de 1882. Na verdade, o texto é uma velada crítica satírica ao cientificismo vigente à época e também um libelo contra a igreja católica, credo reinante naquele tempo.


No volume de contos “Várias Histórias”, de 1896, tem o conto A CAUSA SECRETA, em que o escritor expõe a questão do sadismo e do prazer pelo sofrimento alheio tão corrente nas teorias do pai da psicanálise.


Outro fator importante é que a maioria das personagens de Machado se veem condenadas pelo “fatalismo” da existência humana, e em regra todos sucumbem aos seus desejos e franquezas; a impotência do homem diante do próprio egoísmo ou mesmo quando vítima do sistema que o cerca.


O personagem está sempre em conflito com essas condições. E nenhum deles resiste à decrepitude do estado de coisas; é assim com Brás Cubas, que acaba louco por não ter conseguido obter o sucesso que esperava, é assim com Bentinho, que fica solitário e melancólico, é assim com o médico Simão Bacamarte, que acaba por se internar na clínica onde encerrava gente doida e gente sã; é assim com Rubião, do Quincas Borba, que também sucumbe, não à loucura, como o escritor nos faz crer, mas sim porque as coisas ficaram estúpidas diante dele e ele perde as forças para lutar.


Nenhum deles consegue seus objetivos. São todos fatídicos, como a vida.


O indivíduo machadiano nos é mostrado sempre na perspectiva do réu diante do júri popular; ou o “tribunal judicial da opinião”, esse tribunal anônimo e invisível em que cada membro julga e acusa.


Isso nos remete imediatamente à obra monumental do escritor Franz Kafka, famoso por criar a obra que talvez seja a mitologia do século XX, em que os homens são todos encaçapados, não pelos seus desejos, mas pela burocracia que faz a civilização ser refém e raptora a um só tempo.


A questão da Abolição da Escravatura


A questão da escravatura é possivelmente um dos pontos mais sensíveis na biografia do grande Machado de Assis. Primeiro que Machado vive numa época de profundas mudanças nacionais; quando nasceu, éramos uma monarquia imperialista; quando morreu, éramos uma república novata e perigosa.


Machado era um monarquista liberal, porém politicamente conservador. Tinha horror que o país fosse entregue a uma turba de pessoas incultas, mais preocupadas em dilapidar os cofres públicos do que em ter um projeto para a nação. Sobre isso ele falou sem disfarces, sem subterfúgios, numa crônica de 5 de março de 1867:


“Quanto às minhas opiniões públicas, tenho duas, uma impossível, outra realizada. A impossível é a república de Platão. A realizada é o sistema representativo. É, sobretudo, como brasileiro que me agrada esta última opinião e eu peço aos deuses que afastem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais iluminou".


Quem acompanha os últimos acontecimentos políticos do Brasil entende a preocupação do escritor.


Machado viveu com os maiores intelectuais do seu tempo: Álvares de Azevedo, José de Alencar, Raul Pompéia, Castro Alves... É como diz Daniel Piza, “a maior concentração geográfica de inteligências na história do Brasil”. Entre esses grandes intelectuais, destaco um, Joaquim Nabuco. Nabuco foi, sem dúvida, o maior propagandista da causa dos escravos, era um exímio orador e um grande diplomata que deixou uma obra de peso sobre a política do Brasil.


Pessoalmente, os estilos de Machado e Nabuco não eram parecidos; Machado não era homem de tribuna, e Joaquim Nabuco arrancava suspiros quando subia no palanque. Todavia, apesar de Machado ter participado de reuniões da “sociedade abolicionista” e da famosa crônica em que ele diz que a festa da Abolição “foi a maior festa popular que tinha visto”; o fato que não requer dúvida é que sua atuação foi mínima demais para um problema grande demais.


Mesmo levando em consideração seu caráter recatado, ele já era uma das vozes mais poderosas do país quando a princesa Isabel decretou a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888. Ele, não apenas pela sua origem, mas por ser antes de tudo um humanista, não poderia se omitir ou ao menos não usar seu prestígio de forma mais contundente em nome de uma causa tão importante não só para o presente, mas para o futuro do país que tanto o preocupava e que ele ajudou a construir.


Mas, pela sua fraca atuação na questão da abolição da escravatura, penso ser correta a ideia de que ele ignorava a condição de seus pares; ele podia fazer muito, mas fez pouco. Mas o que dizer? Às vezes, esperar o melhor dos outros é a pior forma de arrogância.


Essa sua atuação modesta causa desconforto quando confrontada com outro aspecto falho na personalidade de Machado.


Funcionário público durante muito tempo, uma pessoa que trabalhava com ele disse que Machado “se desfazia em mesuras para agradar aos superiores”; sem contar também a média que fazia com o imperador D. Pedro II, lhe dedicando sonetos.


Os deuses não dão tudo ao mesmo homem.


Machado também foi muito duro com seu colega de profissão, o grande Eça de Queiroz. Ambos trocavam cartas e farpas pelos jornais da época. Machado criticava Eça porque entendia que o estilo do escritor português era demasiadamente naturalista, uma cópia das obras francesas de então.


Mas o Sr. Eça de Queiros era um homem de espírito elevado. Quando recebeu a primeira edição do livro MEMÓRIAS PÓSTUMAS, simplesmente se encantou com o capítulo 7 do livro, aquele que narra o delírio de Brás Cubas antes de morrer.


Como vivia em Paris e participava ativamente dos grandes saraus literários da capital cultural do mundo de então, Eça traduziu para o francês o capítulo e o recitou para uma plateia extasiada, e ao final da récita disse que aquilo era uma obra-prima incomparável. Era um rival delicado, esse Eça.


Observador social


Outra questão interessante é a eterna confusão que se faz entre a obra e o autor. Ambos são criaturas distintas.


Machado foi um dos maiores observadores sociais do seu tempo. Criticava, por meio da ironia, todas as instituições e convenções sociais do seu tempo. E é errado dizer que ele foi apenas “observador consentido”.


Nada escapava a ele: a religião, a política, a ciência e os remédios milagrosos, a monogamia, o adultério, tudo passa pelo seu olhar agudo. O que a crítica acadêmica e jornalística insiste em confundir é o escritor com o homem Machado de Assis. Sem contar que insistem em dizer que ele era um pessimista, quando na verdade era um simples realista.


Na minha opinião, o otimista é só um sujeito mal informado.


Quando, no fim de Memórias Póstumas, Machado diz a famosa sentença “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”, não é o próprio Machado quem fala, e sim a personagem, desdenhando o mundo que vai deixar sem as aspirações que tanto buscou.


Em Hamlet também ocorre o mesmo, quando o príncipe principia a recitar seu “ser ou não ser, eis a questão”; não é ele que fala, mas o próprio Shakespeare:


Quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo/ as injustiças dos mais fortes/ os maus tratos dos tolos/ a agonia do amor não retribuído/ as leis morosas/ as implicâncias dos chefes….


Ora, quando um príncipe vai passar por esses malogros? É o próprio autor que usa a voz da personagem para ecoar seus sentimentos acerca do mundo.


Já Machado inverte esse processo. Ele, à maneira de Homero, se esconde atrás dos personagens com o fim de não podermos captar a essência do homem por trás das palavras.


Jogo de Espelhos, o autor engana o leitor


Machado era mestre na arte da dissimulação. Fazia isso com extrema maestria. Dom Casmurro talvez seja sua grande obra-prima. Para quem conhece pouco a história, trata da vida de Bentinho, que narra sua biografia da adolescência até a velhice.


O livro é um primor de narrativa psicológica. Infelizmente, ou felizmente, o livro ficou reduzido a uma questão: Bentinho traiu ou não traiu Capitu?


A questão da traição passou a ser o principal vetor do livro, e o próprio narrador tenta nos vender a ideia de que realmente foi traído pela insensível Capitu. Logo no capítulo 2 do livro, quando Bentinho começa a falar da decoração da sua casa, sem aparente pretensão, fala da mobília, de quantas janelas existem na casa... Veja o que ele diz:


“Nos quatro cantos do teto, as figuras das estações e ao centro das paredes os medalhões de César, de Augusto, de Nero e Massinissa… Não alcanço a razão de tais personagens.”


NÃO ALCANÇO A RAZÃO DE TAIS PERSONAGENS. Perceberam como ele quer iludir o leitor? Uma leitura mais atenta nos mostra que todas as personagens citadas por ele foram o quê mesmo? Foram TRAÍDAS! Tanto César, como Augusto e Nero são famosos por terem sido traídos pelos seus compatriotas, gente em quem eles depositavam fé.


Era o autoelogio de Bentinho, dando a si mesmo o rótulo de vítima, comparando-se sorrateiramente com figuras traídas do passado.


CONCLUSÃO


Machado foi o que o clichê pede para chamar de “força da natureza”. Diferente de grande maioria dos grandes gênios, ele não era um sujeito atormentado, dado a comportamentos intempestivos ou surtos de estrelismo.


Vivia uma vida feliz, participava de reuniões com amigos (aliás, grande cético, penso que a única coisa em que Machado acreditava era na amizade), ia muito ao teatro e espetáculos de ópera, jantava fora com os amigos; só no fim da vida é que se tornou um homem recluso, com os dois golpes que acabariam por matá-lo: a morte de sua amada esposa Carolina em 1904, com quem viveu por 35 anos, e o câncer na língua que o levou para a sepultura. Aliás, ele tirou a sorte grande ao conhecer uma mulher que o completava e que o amava acima de tudo.


Machado entrou na vida como um pirralho pobre e franzino com um futuro incerto; morreu poliglota e consagrado como o maior escritor de sua geração; de sua geração apenas não, agora quem vai falar é um apaixonado.


Dos escritores que se expressaram em língua latina, não se levantou ninguém maior do que Joaquim Maria Machado de Assis. Apesar de Virgílio. Apesar de Guimarães Rosa. Apesar de Borges. Apesar de Cervantes. Apesar de Proust. Apesar de Racine. Apesar de Flaubert. Apesar de Camus. Apesar de Camões. Apesar de Dante.


Só não vou mais longe e digo que ele é o maior escritor universal em todos os tempos porque se deve respeitar gente como Kafka, Dostoievski, Tolstói, Dickens, Goethe, James Joyce, Thomas Mann, Oscar Wilde, Willian Faulkner, Homero e Sófocles. Mas, no mínimo, o nosso grande Machado de Assis, produto genuinamente nacional, faz ombro com qualquer um desses que não escreveram em língua latina.


Para finalizar, contarei uma historinha do pintor holandês Van Gogh. Influenciado pela pintura japonesa, Vincent pintava com extrema rapidez, sem desenho prévio, aplicava a tinta direto na tela; às vezes pintava um quadro por dia. Em carta ao seu irmão Théo, Vang Gogh o advertiu:


“De meu trabalho resultam telas feitas velozmente. Mas bem calculadas de antemão. E quando lhe disserem que é coisa feita demasiadamente rápida, poderá responder que viram demasiadamente rápido”.


Com Machado se dá o mesmo. Caso tenha lido um livro dele e não tenha gostado, certamente é porque o fez demasiadamente rápido.


Obrigado.

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