Franz Kafka, é possível, não inventou a humanidade, pois se a tivesse fabricado, a teria moldado com menos vícios. O maior poeta em língua alemã do Século XX inventou mais do que a humanidade, inventou a prática da humanidade; desfez a teoria e forjou a humanidade no que ela tem de mais perversa e bizarra, lírica e sofrível, dorível e tensa.
Fez saber que o homem, destituído de ideologias, é folha à deriva na floresta insana de variedades e perdões que faz do absurdo ato de existir um repulsivo exercício de equilíbrios.
Em “O Castelo”, o inviolável palácio em que Josef K. jamais poderia entrar é simbologia concreta da desrazão da existência. Nada faz sentido em Kafka. Tudo faz sentido em Kafka. Os sentidos não importam na mitologia de Kafka e é essa mágica que o torna um dos mais extraordinários tradutores do gênero humano – se não o maior.
O sulfúreo material que o artista-filósofo emprega para penetrar tão agudamente no coração do “problema-existência” é, na minha opinião, um achado científico de uma pureza esplêndida: Kafka se desvencilha do centro do homem, isto é, seu ser, e investiga e desnuda o ambiente que cerca o homem moderno, que em essência é o mesmo que rabiscava as cavernas em tempos imemoriais.
É a partir do que cerca o homem que ele passa a especular suas ações, seus comportamentos sinistros, seus meios de inviabilizar e sabotar a própria sobrevivência - “o sentido da vida é que ela termina”.
Naturalmente, entre os ingredientes misteriosos que pululam efervescentes na cabeça do jovem pensador judeu, está a ironia.
Ora, foi o próprio homem quem arquitetou o ambiente hostil que habita e que o molda de forma tão perniciosa e anticristã a ponto de criar barreiras para o simples ingresso num prédio de apartamentos: o RG, a fotografia e, por último e mais tenebroso, a desconfiança do porteiro.
Talvez seja assim que K., a misteriosa personagem de “O Processo”, se estabeleça e comece a entender os motivos que o levaram a ser processado e julgado por um crime que aparentemente jamais cometeu.
No entanto, Kafka, diferentemente de, por exemplo, Picasso, é um espírito que “procura”, sem jamais encontrar nada. O poeta cubista espanhol não tinha dúvidas jamais sobre o domínio de sua arte pictória e, por extensão, da “sensação de humanidade” que o dominava enquanto pintava coisas absurdas, como o afresco Guernica; Kafka ignorava a genialidade, Picasso a possuía.
Nisso, talvez Kafka se aproxime de Van Gogh, que queria “silenciar em todas as línguas do mundo”, num paradoxo surreal, vez que sua obra o faz falar em todas as línguas do mundo, silenciando quem a vê. “Você não sabe a energia que reside no silêncio”, ou: “As sereias possuem uma arma mais poderosa do que seu canto: seu silêncio”.
O problema em Kafka é sua desimportância para o homem enquanto espécie. Ele não se debruça sobre questões existenciais, o que ele intenta incessantemente é entender que raios invisíveis atingem o homem a tal ponto de ele parecer desprezível até quando pratica o bem, fenômeno que talvez se explique pelo fator antinatural da prática do bem, já que, como espécie “autoconsciente” que somos, temos a natureza programada para o narcisismo mais daninho e pantanoso, o zelo pela autocompaixão mais cínica e rasteira.
É o que nos define como espécie.
E Kafka soube captar isso como poucos outros artistas. Artistas são os únicos seres dotados de alguma fagulha de divindade que automaticamente evapora assim que eles começam a criar.
Não são os ditadores ou os facínoras que fascinam os deuses: são os artistas.
Se há algo que os deuses temem são os artistas de vocação, possivelmente detestando os de necessidade, a pior espécie já criada depois da sombra.
Kafka explica o ser humano entendendo-o e perdoando-o pela impossibilidade oriunda da pequenez (“numa disputa entre você e o mundo, o mundo vencerá”) e da insignificância das nossas mentes pensantes.
Quando escreveu, em algum momento de 1922, que “a culpa é sempre indubitável”, ele nos condena pela tortuosa via da absolvição prévia; o recado é: “Existimos, podemos cometer as mais singelas barbaridades e fim”. Parece a repetição de Dostoievski do “se Deus não existe, então tudo é permitido”; mas não é. O componente e o sujeito em Kafka não é uma potência misteriosa e inalcançável (DEUS); é o simples verbo “culpa”, que condena independente da ação realizada; existiu? É culpado.
É um recado duro, mas correto no sentido teológico, científico e filosófico, cabendo acalorada discordância e infindos recursos contra essa tese.
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