Banheiro.
A cidade de Barra de Serinhaém via em seu Ideário Pontepreta o protótipo do homem destituído de todos os sinais que identificam um homem comum. Vestia-se sempre de azul, e a força mental que esta cor exerce no gênero humano não era transfundida para o modo como seu Ideário vivia a vida.
Ideário Pontepreta, à maneira de Diógenes, tinha horror às convenções, mas um detalhe em particular o diferenciava do cínico ateniense: tinha temor e respeito às leis. Conter no seu corpo esguio essa contradição era a cruz que ele soerguia no ombro; ombro, aliás, crestado, ensopado de feridas úmidas, adquiridas todas dos açoites de que não era vítima sempre que feria a rigidez do regime local, que não previa (sem sanção) o fato de um local cavalgar nu sobre um crucifixo de metal que ele mesmo forjara. Cicatrizes mentais. Era dolorido para ele não compreender porque achavam graça e até louvavam seu comportamento extravagante...
Não tinha fama de louco seu Ideário. As autoridades civis não o tomavam como um fora da lei; os residentes acolhiam-no como um excêntrico --- nome elegante usado para maquiar loucos de estima. A fortuna e as altas somas pagas em impostos e outros dispêndios asseguravam a ele a simpatia comum, militar, religiosa e civil, comprada a dinheiro graúdo, cuja origem escapava da ciência de todos, mas louco é aquele que algo recebe e questiona a origem, o cheiro, o táctil do objeto. O correto é receber e não gemer nada.
Todo o crítico que censurasse os atos difíceis de seu Ideário era logo abolido das festividades locais; tinha cassada a propriedade se proprietário fosse; em reincidência ao desaforo de travar a cara por Ideário urinar dentro da igreja --- em plena missa ---, custava ao infrator o degredo, o exílio para uma cidade sem água nem amor. Após as duas exposições das atitudes excêntricas de seu Ideário, o leitor poderá julgar que ele era agnóstico, ateu, comunista, fã e acionista de corporações poluidoras. Não era. Ideário era um homem pio, cria em deus com a força que movem carolas a serem carolas e até mais, uma vez que há notícias de que jejuava nos dias indicados pelo clero, concluía as novenas, e não só isso: respeitava as potências pagãs, deuses achados em esgotos, símbolos africanos e hindus; era uma babel religiosa o homem, um louco ecumênico.
O destino natural de um homem distinto como este é o manicômio ou as páginas da história; quando menos, uma facada anônima. Mas Ideário sobreviveu a todos os seus contemporâneos; não ria do fato de ver gente querida perder a batalha da vida para a morte; cogitava a confecção de epitáfios solenes; descartava-os nas primeiras sílabas, até resolver exumar os corpos dos dois mil habitantes desaparecidos desde que ele ali apareceu. Corpos frescos, misturados a esqueletos secos foram como que regurgitados da terra que, se não for provocada, nunca regurgita nada, nem financistas. Ideário, crendo assaz arrogante sua ação, após perceber a calamidade de seu ato, pediu para que o enterrassem vivo; pedido que causou algum rumor, logo solapado pelo fedor clássico de corpos decompostos, e guardaram-no no ventre da terra.
Hoje, anos depois da intrépida aventura de Ideário pela cidade de Serinhaém, fala-se sem temor que a terra geme naquele lugar, como se estivesse em trabalho de parto perpétuo, sem rancor. Uns acham que é Ideário arrependido da ordem que dera extinguindo a si; outros apostam que ele enterrou consigo a graça juvenil da cidade, que voltou a ser um lugar normal, despido da sensualidade apoteótica de seu filho ilustre. A normalidade aturdia os moradores, e ceifadas também estavam as esperanças, uma vez que Ideário não deixou herdeiro.
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