O limite é uma engrenagem mórbida que enguiça quando o queremos transpor, e se não for isto, sedoso leitor, se for essa linha acima mero deslocamento de um pensar obtuso e tedioso, culpe a fisionomia das estrelas, sempre sorridentes enquanto nós aqui vomitamos o produto da própria precariedade que produzimos, como evidencia este excerto do Quincas Borba:
“…O Cruzeiro [do Sul], que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para discernir os risos e as lágrimas dos homens.
Sim, está mui lejo como diria o bom Cervantes; cá embaixo, perdidos na periferia dum sistema periférico, duma galáxia periférica, nos descontentamos com o bom e com o mal, aplicamos a justiça à nossa maneira, desordenamos a natureza dos princípios à forja ancestral que resultou em nós, meros bípedes dotados de sêmen, óvulos e empáfia.
A desunião e os conflitos da nossa existência pesam muito mais na mente do ignaro que ousa querer saber, e, como enfatiza o enorme Goethe, quanto mais se sabe, mais aumenta a dúvida. E sendo a dúvida o combustível da razão, é salutar que se emende à escuridão que nos leva à incerteza; uma dose de paciência, mas haja paciência para tolerar tanta incompreensão!
O pessimismo de Schopenhauer fez muito mais pela procura da fé e da razão do que todo o cabedal religioso do mundo. É o pessimismo o farol que orienta as mentes mais poderosas, inquietadas com as armadilhas anunciadas pelas opressões vulgarmente chamadas de fé, e seu pêndulo impreciso, a Religião.
A religião desbota no humano tudo aquilo que ele potencializa de modo artificial, isto é, inverte a natureza simples do viver, atrelando a ela necessidades e obrigações, e quando não o faz por graça e sedução, usa a lâmina da espada, a forma mais rude de catequizar os náufragos e penitentes que buscam nas congregações uma resposta e só encontram opressão.
Quando o entrave entre o ser e o mistério se esgota, o que resta é a reflexão, como a ousadia do humano em se interpor entre o planejamento do caos e o infinito. Ora, se há poucos milhares de anos éramos meras tribos, se há milhões nem existíamos, por que crer que um plano superior nos guia em direção à ventura? Que diferença fazemos para o Cosmo? Em breve este caos organizado entrará em colapso, como já deve ter entrado zilhões de vezes, e a redenção humana será obtida quando todos os nossos ascendentes e descentes forem inapelavelmente vertidos (de novo) em insalubre pó.
O Criador que fundou o que chamamos de mundo, com todas as suas belezas e feridas, não objetiva um destino glorioso a esta espécie; antes, ele a esqueceu em algum meridiano de uma muitíssima e distanssíssima região onde nem a compreensão mais elevada ousaria supor. E por este desleixo e descaso, vagamos por este nano pedaço de rocha, vulneráveis às ações da natureza e de nós mesmos, a criatura que agride a benesse da vida com uma ferocidade só encontrada nestes vácuos espaciais.
A maior de todas as calamidades pode ser uma verdade definitiva; se não foi Deus quem criou o homem à sua imagem e semelhança, pode ter sido justamente o oposto: o homem ter criado um deus viciado. Só isso explica a produção diária de nossa debilidade sem fim.
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