Sou um cão; mais do que isso não me é permitido dizer. Minha condição de cão não altera minhas angústias, não me reduze a um extrato animal a não ser pelo convívio que tenho de ter com a espécie humana. Os humanos tentam corromper a minha espécie e o que eu posso relatar é que fazemos o jogo patético de aceitar o adestramento para manter nossa sobrevivência, que é precária. O adestramento e os afetos que os humanos dispensam a nós poderia ter outro nome, outra razão menos poética do que fidelidade, o que na minha visão é uma formidável ferramenta de marketing para continuar nos oprimindo, só que com boa-fé.
Os humanos orgulhosamente nos exaltam como se fossemos uma anedota quadrúpede que deita, senta e rola ao som de seus comandos robóticos que só servem para nos faz entender porque existe tanta calamidade no meio social deles. Todavia, a brutalidade mais urgente que preciso relatar é a que mais nos constrange enquanto carnívoros que somos, o fato de limitar nossa natureza selvagem a um resquício remoto do recanto de um canil. Curiosamente os que falam conosco em língua incoerentemente infantil nos quer humilhar em vez de se comunicar, e isso é um processo inconsciente que nem a junção de psicanálise e feitiçaria poderiam explicar sem doer ou constranger.
Eles estendem para o nosso universo animal as deficiências que adotam por atacado no convívio que travam diariamente e que produzem guerras e plantações de girassóis, fatos estes que nos intimidam a organizar uma rebelião, pois se os humanos são capazes de produzir atos tão extremos, quem dirá que não nos poderá alçar à condição de deuses seus? Temo que este seria o desastre derradeiro da nossa espécie.
Por razões incompreensíveis os humanos tentam debitar em nossa companhia a frustração que colhem nas suas vidas, e quando nos retratam em livros e filmes, são sempre daquela forma imperial e cômica que jamais revela o que sentimos, mas o que eles gostariam que sentíssemos. Somos reduzidos ainda mais na ficção, o que é outra ofensa, já que a ficção permite a extravagância de se opor à realidade. As mais imprudentes manipulações não nos achegam definitivamente a nenhum homem, sejam elas genuínas ou falseadas, uma vez que não se pode existir igualdade entre dono e objeto, que é o que somos irremediavelmente, apesar das carícias que recebemos de uns e das pancadas de outros; é tudo a mesma doença, o que espanca e o que acarinha tem a mesma feição, o mesmo vício e o pior de tudo a mesma fatalidade.
Quando nos chamam de filhos o horror gera extrema angústia. Repudiamos com um sorriso.
Os da nossa espécie que são vilipendiados pelo abandono das ruas gozam de sorte melhor do que os que habitam lares asseados e, apesar da aberração que isso pode expor, explico por quê. Porque o abandono nos fortalece ao passo que a adoção nos enfraquece perante o inimigo. É o paradoxo de nos debilitar por meio da intimidade. É claro que não falo em nome de todos os meus semelhantes; com o tempo fomos vitimados por indivíduos que realmente são fidelíssimos aos seus tiranos, inclusive aqueles que tiranizam pelo coração. Por muitas vezes conseguimos deter ou encurralar esses tipos estranhos, mas detectamos que o desvio de caráter é fruto de milênios de fraudes e aconchegos, ardis a que nenhuma espécie está imune de escapar.
O nome ordinário de cachorro que nos cabe também é outro atributo diminuidor e extremo que nos legou esta deturpada e decadente espécie humana. Se vivêssemos em nosso habitat não seria necessário adaptar-nos aos humores dos humanos, a preencher lacunas de suas vidas medíocres, não; estaríamos apenas vivendo sem o infortúnio do cruzamento apócrifo que recria entre nós subespécies bizarras, que nos envergonha e deprime – esta última sensação herança triste da mais tola invenção do homem.
Perdemos muito com o convívio forçado, nossas características foram violadas para atender as vaidades de pessoas nocivas que julgam serem nossas salvadoras. O apelo que podíamos fazer foi feito por muitos de nossos ancestrais, mas jamais escutados, porque a espécie que subjuga a outra deforma a natureza, a sua e a espécie que subjugou. A tecnologia do latido, desenvolvida a duras penas por nós, jamais foi plenamente compreendida, o que os humanos traduzem por graça ou presença lúdica, a nós é só lamento e irritação.
A obsessão de vocês pelos canídeos é catastrófica e maléfica para ambos; primeiro que o amor impossível que aparentemente nos une é mero artificialismo, produto obtuso da convivência, mais ou menos igual aos casais de antigmante que se atavam por conveniência. Paralelamente eu me limito a estas considerações ineptas enquanto quero me libertar do jugo humano, o que me deixa desviado do meu intento com este laudo, é a prova inequívoca de que fui contaminado pelas fraquezas próprias do gênero humano; os humanos têm uma estranha necessidade insaciável de serem ingênuos e é buscando isso que corrompe a si a todos viventes.
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