29/01/2007
Era duas vezes uma festa. Contar uma história inventada com o tradicional “era uma vez” deixa em descrédito o contador que historia suas invenções. O organizador da festa só mandou convites para os gênios; meio-gênios não eram aceitos.
Só os gênios absolutos.
Aristóteles sentou à mesa desconfiado; dividiu-a com Picasso, Copérnico e Michelangelo; os outros faziam o salão de festas levitar. Noutra mesa estavam Oscar Wilde e seu charuto, Rui Barbosa e Homero, que era vítima do olhar incrédulo do brasileiro que não acreditava mesmo que o poeta grego fosse real. A um canto, mojito em punho, Hemingway. Ele se distraía com as histórias fantásticas de Shakespeare, que nunca tivera uma tão seleta plateia e improvisou uma peça, assim, de estalo; olhou do lado e viu Grande Otelo; perguntou a ele se podia fazer um Otelo melhor que o mouro; o brasileiro topou na hora. De pé, Machado e Leonardo discutiam a pré-existência da alma, enquanto o italiano rascunhava um retrato caricato do escritor que ficou mal humorado, mas com estilo.
Beethoven, incomodado, queria tirar notas do zum-zum, mas ainda estava surdo como uma ostra, o que o aborreceu tremendamente. Na janela, olhavam as estrelas Olavo Bilac e Galileu; o italiano, incrédulo, sem saber o que mais admirar, se o brilho ou se os versos; flagrou Edwin Hubble pensativo, mostrou a este um caco de vidro com o qual forjou seu telescópio e sorriu. Marcel Proust, na dele, não queria conversa com Bill Gates, que tentava lhe mostrar um software antimelancolia.
Santo Agostinho recusava um scotch oferecido por Churchil, que conseguira se livrar do lenga-lenga do jovem Mozart, que queria convencê-lo de que a música era a vida em forma de bemóis; cansado de esperar, Van Gogh foi à caça de Gauguin, saber o que este fizera da sua orelha; Marlon Brando disputava à tapa as belas garçonetes com Lord Byron, sob a férrea censura de Lutero, que o ameaçou com um versículo bíblico; Newton e Einstein falavam coisas tão complexas, mas tão complexas, que saíam faíscas de íons de suas falas; caindo de sono, Borges pedia a Marie Curie que parasse de falar de radioatividade, ao passo que Pitágoras calculava com atenção o que fazia Woody Allen a ensaiar um monólogo que Kafka não queria recitar.
De repente, Caruso e Gardel aparecem no palco: cantam abaixo do Tom e são vaiados por Nietzsche, que ouvia uma explicação de Aleijadinho de como compunha suas obras órfão das mãos; Oscar Niemeyer ouvia calado as imprecações de Arquimedes, que não podia crer como o arquiteto fazia de um simples risco um ponto de equilíbrio; Caravaggio mostrava a Wagner que uma birita ajudava a recriar o já criado; ouvindo essa sugestão, Cervantes pedia a Dalí que lhe explicasse o relógio derretido e se aquilo era obra da “birita”; Alexandre discutia com Guglielmo (inventor do rádio) porque ele não nasceu no seu tempo; Clarice Lispector, Rembrandt, Camões e Luiz Gonzaga observavam a altercação entre Henry Ford e Tomás de Aquino, que haviam feito duras críticas a Karl Marx, que dizia que o problema não era seu: se aplicaram mal suas ideias.
Graham Bell quebrava a cabeça com Platão acerca dos princípios do telefone celular usado por Sócrates, que usava o aparelho para falar com Picasso e só dizia “que nada sabia” o tempo todo, para enorme desconfiança de Tesla, que pôs em ação sua bobina, eletrizando ainda mais o ambiente. Vendo aquilo, Manuel Fangio ficou irritado, porque acostumado a outros ruídos; Noel Rosa ensinava em russo um samba novo a Dostoievski, que traduzia para o iídiche a Goethe, que explicava a Dante que esse ritmo era do Novo Mundo; Pete Sampras jogava charme para Maria Esther Bueno, interessadíssima no que Napoleão dizia a Senna acerca da diferença entre seu cavalo e um F1; o pequenino Toulouse-Lautrec perguntava a Michael Jordan qual a razão do excessivo tamanho; Maomé refletia e queria saber mais sobre a resistência pacífica de Gandhi, que por sua vez pediu a Flaubert uma força, receoso da espada que o árabe fazia reluzir à cintura.
Guimarães Rosa ouvia impávido (e pálido) as razões de Calvino para romper com a igreja católica; Maradona tentava ensinar a Tolstói como equilibrar uma laranja com o calcanhar, mas o camponês desistiu na oitava tentativa; Drummond não entendia uma palavra do que James Joyce dizia, mas fazia com elas uma poesia acessível.
Boquiaberto com o sucesso de sua empreitada, o organizador do banquete não pôde conter seu orgulho; bateu com o talher na borda dum prato de porcelana que trazia à mão e o atrito produziu um silvo arisco; Beethoven gritou “ouvi!”, todos se espantaram e o anfitrião disse que sentia muito interromper o bate-papo, mas já estava na hora de o sonho acabar, pois mesmo os mais desvairados sonhos têm prazo para o fim.
Martin Luther King protestou, dizendo que tinha um outro sonho, no que John Lennon concordou dizendo que o sonho não podia acabar. Darwin, desconfiado, pergunta a Freud se havia alguma consideração a fazer acerca de tantos egos; a resposta foi de que a consulta sairia cara demais, o que obrigou Stephen Hawking a levantar da cadeira e pedir o fim do convescote.
Constrangido, o organizador recebeu uma sonora vaia, saiu meio assim, à francesa, e deixou rolar a festa, para deleite dos convidados e da sua imaginação.
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