A semana e o mês ainda correm com a disenteria peculiar ao calendário, mas garanto que nenhum auspício foi maior do que o protagonizado pelo governo australiano que pediu perdão ao povo aborígine por devastar sua terra natal. Gostaria de ver a moda singrar outros mares.
Não sei, todavia, se o perdão tem valia positiva (jurídica) ou apenas aquela protocolar, como quem diz “foi mal aí” mas o mal é irremediável. A igreja católica levou exatos 489 anos para transmutar Joana D´arc de herege em santa. Existem males que são irremediáveis. Eu, como Machado de Assis, creio que mesmo quando a Inglaterra acabar, quando não existir mais língua inglesa, irá existir Shakespeare; adiciono a isto o fim da igreja, porque tudo degenera e se extingue nesse mundo, até grandes instituições; mas Shakespeare é eterno e veja se o mal perpetrado pela igreja à mártir Joana não é simplesmente indelével, uma vez que o bardo a desenhou como uma bruxa má em sua obra e apesar de vivíssimo não pode retificar o equívoco que a historiografia o levou a cometer. Isto o perdão da igreja não apaga. Até mesmo um espírito de vulto como Voltaire condenou a “Donzela de Orleans”, como também era conhecida a heroína militar francesa, ironizando-a como uma prostituta intelectual.
Igual fato se deu com Galileu, que por pouco não teve o funesto destino de São Lorenzo, lapidado com pedaços de chumbo e depois queimado numa grelha; o tempo e o bom senso da igreja naturalmente os absolveu, mas aí já se foi o sangue que uma vez derramado só pode reentrar nas artérias da biografia do finado; fato bom para a História, ruim para o doador compulsório.
O Brasil ainda não pediu desculpas a duas gerações merecedoras delas; os negros massacrados pela escravatura e aqueles “negros políticos” igualmente massacrados no regime militar; talvez isto aconteça daqui uns 100 anos; o fisiologismo não permite sequer a publicação dos arquivos dos departamentos militares responsáveis por aquele período agraz à nossa memória; quando as desculpas vierem, será como um bálsamo insosso, de efeito decorativo.
O sinal australiano por mais aguado que seja (1% da população australiana é aborígine) é ao menos um modo, ainda que burocrático, não de reparar um dano, mas de chamar a atenção para os erros do futuro; quando os tempos avançarem os planetas próximos forem devassados pela voracidade dos homens, hão de lembrar-se que os habitantes alienígenas (rochas que sejam) merecem toda consideração, para não ser necessário pedir inócuas desculpas no futuro do futuro.
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