Na parte oriental da Catedral da Sé, a arquitetura gótica que a expele da cidade faz estágio permanente uma família de índios. Moram sobre a calçada. Uma mãe índia, três filhos. Talas de tarumã e fibra de buriti são o recreio das crianças, seus brinquedos. O frio na cidade, nessa época do ano, não é amigo. Todos lá, os trajes como se estivessem na tribo, sumários. Perpassam pessoas num frenesi rumoroso, e como se está perto do Fórum João Mendes e do Tribunal de Justiça, é correto deduzir que pela calçada circulem advogados, promotores, juízes, desembargadores e todos os demais dignitários legais da Justiça.
No filme Beleza Americana (American Beauty), de 1999, do diretor Sam Mendes, há uma cena marcante – e não é aquela do saco plástico a bailar ao vento. É a que o diretor desfoca a lente do voyer que filma a insinuante vizinha que se exibia sensualmente para ele voyer, e pelo espaço mínimo do espelho o observador se concentra na menina que, alheia ao streper da amiga, penteava-se impunemente.
Quando parei para observar o exotismo de indígenas estarem no centro da cidade concorrendo com os institucionalizados mendigos, não dei a menor importância. Quem se importa com índios abandonados? O bispo da Sé, a metros deles, talvez não se incomode, porque o faria eu ou você se acaso por lá passasse? O que fez acender a luz de “gravando!” na câmera que trago na retina foi uma mulher que parou para entender o flagelo daquele espetáculo.
Esqueci os índios e fixei meu olhar nela: o semblante que demonstrava incredulidade à flor da face. O que pensava a mulher? Os queria hospedar em casa? Adotar o indiozinho de franja urbana? A vi sussurrar para um guarda municipal que parecia imune àquele teatro nacional; ele apontou alguma coisa, entrou no bar e pediu um cafezinho. A mulher, estática diante das crianças, por vezes ameaçou se aproximar, mas parecia hesitar diante do provável obstáculo da língua; não parecia dominar o tupi, prognostiquei rasteiro.
O ardor com que levava as mãos ao rosto comovia pela tenacidade da ação. Meneava a cabeça, censurava Deus, concluía o gesto com um olhar pétreo à catedral que, como o guarda, também imunizou-se de sentir dor. Friccionei uma mão contra a outra, calculei o que falaria para a mulher, mas ela desistiu de ali ficar, rumou sentido ao átrio da igreja, e dela me despedi com um olhar pífio, porque inútil.
Concluí os trabalhos no Fórum e retornei pelo mesmo caminho; a instalação do cenário permanecia, como a esperar o rígido diretor que não chega. As três crianças completamente indiferentes à precariedade de suas condições sorriam e lançavam os objetos coloridos umas para as outras; nenhuma delas percebia os transeuntes, que passavam ligeiros, ávidos por solucionar suas questões jurídicas e/ou estomacais. Às vezes a ignorância da existência é o melhor abrigo para a chuva de dardos que se lançam da terra para cima, sim, porque é do seio da terra que se levantam todos os homens e suas armas, seus metais.
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